Direitos autorais – o ponto de maior tensão da lei que regulamenta a inteligência artificial no Brasil

Direitos autorais – o ponto de maior tensão da lei que regulamenta a inteligência artificial no Brasil
Entre os principais dispositivos do texto está a garantia de proteção aos direitos dos criadores de conteúdo e obras artísticas/Pixabay
Publicado em 11/12/2024 às 12:15

Luciano Teixeira – São Paulo

O Senado aprovou o Projeto de Lei que estabelece o marco regulatório para a inteligência artificial (IA) no Brasil. A proposta, que agora segue para apreciação na Câmara dos Deputados, visa criar um conjunto de regras para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA no país, equilibrando inovação tecnológica com responsabilidade social.

Entre os principais dispositivos do texto está a garantia de proteção aos direitos dos criadores de conteúdo e obras artísticas. Essa medida busca assegurar que autores tenham seus direitos respeitados, especialmente em casos de uso de suas produções no treinamento de sistemas de IA. O projeto é considerado um passo importante para organizar e fomentar o avanço da tecnologia no Brasil.

Um dos principais pontos de discórdia gira em torno dos direitos autorais, especialmente a possibilidade de remunerar autores cujas obras são utilizadas para treinar sistemas de inteligência artificial. Para setores da indústria e plataformas digitais, essa exigência seria inviável e poderia impedir o desenvolvimento de novos modelos. Já para defensores dos direitos autorais, a proposta é essencial para proteger criadores de conteúdo que, muitas vezes, têm suas produções utilizadas sem consentimento ou compensação financeira.

O impasse sobre os direitos autorais

A questão dos direitos autorais passa pela manutenção da proteção aos criadores, de garantir este direito para quem produz esses conteúdos e vê esses mesmos conteúdos sendo usados de maneira indiscriminada pelos sistemas de IA, sem ao menos saber que sua produção está sendo utilizada.

Durante a votação, artistas como o ator Paulo Betti, as cantoras Marina Sena, Kell Smith, Paula Fernandes, o cantor Otto e a produtora Paula Lavigne estiveram no plenário acompanhando a votação da proposta. Apesar de reconhecerem o papel da inteligência artificial e o avanço natural dos processos tecnológicos, eles reforçaram a necessidade de aliar tecnologia à criatividade, respeitando a subjetividade humana.

“Ninguém está aqui lutando contra a inteligência artificial, porque a inteligência artificial a gente entende como uma tecnologia que veio também para trazer progresso. Mas a gente entende que, se há empresas ganhando bilhões com isso, essas empresas precisam arcar com as consequências e precisam arcar com essa mineração de dados que fazem com a nossa obra, com a nossa vida. E não só a nossa vida, mas a vida de toda a população brasileira”, disse Marina Sena em coletiva de imprensa.

O substitutivo estabelece que conteúdos protegidos por direitos autorais poderão ser utilizados em processos de “mineração de textos” para o desenvolvimento de sistemas de IA por instituições de pesquisa, de jornalismo, museus, arquivos, bibliotecas e organizações educacionais. No entanto, o material precisa ser obtido de forma legítima e sem fins comerciais.

Além disso, o objetivo principal da atividade não pode ser a reprodução, exibição ou disseminação da obra usada, e a sua utilização deve se limitar ao necessário para alcançar a finalidade proposta — e os titulares dos direitos não podem ter seus interesses econômicos prejudicados injustificadamente. O titular de direitos autorais poderá proibir o uso de conteúdos de sua propriedade nas demais hipóteses.

O tema exige mais discussão para equilibrar os interesses dos criadores e das empresas que desenvolvem IA. O grande desafio será encontrar o equilíbrio entre a proteção de direitos autorais e a necessidade de acesso a dados para treinar e desenvolver sistemas de inteligência artificial.

Um grupo de 13 entidades já enviou uma carta ao Senado solicitando alterações no texto, argumentando que as regras atuais inviabilizam o treinamento de modelos de IA com finalidade comercial, especialmente por exigirem a divulgação de dados utilizados no processo.

Outros pontos de divergência

Além dos direitos autorais, o texto enfrenta críticas em relação à proteção da integridade da informação e à exclusão de sistemas de moderação e recomendação de conteúdo das redes sociais como itens de alto risco. A integridade da informação, definida como a garantia de acesso a dados confiáveis e precisos, deixou de estar explicitamente protegida em artigos do projeto, o que preocupa especialistas.

Já o novo texto isenta as plataformas digitais de responsabilidade pelo uso de IA em moderação e recomendação de conteúdo. A sugestão, introduzida pelo senador Marcos Rogério (PL-RO), determina que essas questões sejam tratadas em legislação específica no futuro.

Desafios à frente

Filipe Fonteles Cabral, sócio do Dannemann Siemsen e membro do conselho diretor da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), avalia que a redação atual do PL prevê hipóteses muito específicas e limitadas do chamado “fair use”, isto é, a possibilidade de utilização de conteúdo autoral para o treinamento de IA.

“Na prática, qualquer empresa privada que queria fazer treinamento de IA necessitaria de uma licença prévia dos titulares dos direitos autorais. Sem licença, o treinamento torna-se ilegal. Quando se pensa em um treinamento feito com milhões de dados, de fontes diversas, isso simplesmente não é factível. Licença prévia e necessidade de remuneração são coisas distintas. Licença prévia, assim como a negociação individual com cada autor, não é algo realista”, diz.

Na prática, segundo o advogado, a medida é o mesmo que proibir o treinamento de IA no Brasil. “Ninguém quer trazer qualquer tipo de prejuízo aos autores, muito pelo contrário. O debate deve continuar até que se encontre uma solução equilibrada. A proposta que está em pauta hoje não é equilibrada, impede o desenvolvimento da IA e, em último plano, é ruim para a sociedade. O mundo inteiro ainda debate como esse equilíbrio pode ser alcançado. Não é uma fórmula simples”, afirma.

Tatiana Campello, sócia das áreas de Propriedade Intelectual, Inovação e Tecnologia e Privacidade de Dados e Cibersegurança do Demarest, explica que muitas empresas de tecnologia argumentam que a exigência de remuneração pode ser um entrave ao desenvolvimento tecnológico. “Isso aumentaria os custos e a complexidade do desenvolvimento de sistemas de IA, tornando o processo mais oneroso e menos eficiente. Além disso, a necessidade de rastrear e compensar todos os detentores de direitos autorais pode ser vista como impraticável e burocrática”, analisa.

Para a especialista, o que se deve questionar é até que ponto seria possível harmonizar a necessidade de remuneração com as limitações trazidas pela Lei de Direitos Autorais. “Como por exemplo, a possibilidade de reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”, diz.

Especialistas têm opiniões divergentes sobre a exclusão da moderação e recomendação de conteúdo como itens de alto risco no texto aprovado. Alguns acreditam que isso pode reduzir a responsabilidade das plataformas digitais em controlar a disseminação de desinformação, golpes e conteúdo prejudicial. Já outros entendem que o Marco da IA, especialmente no tópico de direitos autorais, tem caminhado para ser uma das legislações mais restritivas do mundo em relação ao tema, até mesmo em comparação a lei da União Europeia. “Haveria, portanto, uma regulação excessiva que poderia limitar a liberdade de expressão e a inovação”, diz Campello.

Os advogados da área defendem que o Brasil adote uma abordagem inicial mais focada em casos de alto risco, permitindo que a tecnologia amadureça naturalmente. Para eles, não adianta criar obrigações sem ouvir as empresas, pois isso torna as regras inviáveis de serem cumpridas.

“Alternativas existem e seus impactos precisam ser estudados com profundidade. O debate ainda está em aberto. Esperamos uma solução equilibrada, que traga respaldo para os autores, mas sem inibir a inovação, favorecendo o desenvolvimento econômico e social do país”, defende Fonteles Cabral.

O resultado terá impacto direto no futuro do desenvolvimento e uso da inteligência artificial no Brasil, influenciando desde a proteção de direitos autorais até o estímulo à inovação. O debate sobre o Marco da IA é apenas o começo de uma longa jornada regulatória em um mundo cada vez mais moldado pela inteligência artificial.

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