O que muda no Brasil após a autorização do cultivo de cannabis medicinal pelo STJ?

O que muda no Brasil após a autorização do cultivo de cannabis medicinal pelo STJ?
A decisão foi tomada pela Primeira Seção do STJ, que reuniu 10 ministros e determinou que a autorização deve ser seguida por regras rigorosas para evitar desvios e garantir a segurança na cadeia produtiva/Pixabay
Publicado em 15/11/2024 às 11:21

Luciano Teixeira – São Paulo

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou esta semana o cultivo e a importação de cannabis sativa com baixo teor de THC para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais. A decisão histórica abre a possibilidade para que empresas possam obter autorização sanitária para plantar e explorar economicamente derivados da planta, mas depende de regulamentação a ser elaborada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela União em até seis meses.

A decisão foi tomada pela Primeira Seção do STJ, que reuniu 10 ministros e determinou que a autorização deve ser seguida por regras rigorosas para evitar desvios e garantir a segurança na cadeia produtiva. A relatora do caso, ministra Regina Helena Costa, destacou que o cânhamo industrial, variedade de cannabis com baixo THC, é incapaz de gerar efeitos psicoativos, mas possui alto teor de canabidiol (CBD), com aplicações terapêuticas comprovadas. “O cânhamo é uma variedade distinta e deve ser tratado conforme suas características específicas”, afirmou.

A decisão não abrange a descriminalização ou legalização da maconha para uso recreativo, restringindo-se ao plantio para fins medicinais. Empresas interessadas na exploração econômica do cânhamo terão que seguir normas a serem definidas pela Anvisa, que incluem medidas como rastreabilidade genética e limitações geográficas para o cultivo.

“Foi um julgamento histórico, que criou uma possibilidade que não existia, num voto da relatora que durou 1h40 abordando os aspectos técnicos, científicos e jurídicos muito bem detalhados”, afirma Arthur Arssufi, sócio do sócio do escritório Reis, Souza, Takeishi & Arsuffi, advogado responsável pela ação.

Contexto da decisão

O julgamento foi motivado por um recurso de uma empresa de biotecnologia que busca desenvolver produtos farmacêuticos a partir do cânhamo. A empresa argumentou que a proibição vigente eleva os custos dos medicamentos devido à necessidade de importação dos insumos, prejudicando o acesso dos pacientes a tratamentos mais acessíveis.

“É um tema polêmico, mas não deveria ser. Não estamos diante de nenhum tema que trata de droga, de nenhum tema ligado à pauta de costumes. A gente está diante efetivamente de um tema relacionado à saúde pública, a economia para os cofres públicos, à dignidade da pessoa humana e livre iniciativa da sociedade civil brasileira”, explica Arssufi.

Os ministros reconheceram que a ausência de regulamentação interna sobre o cultivo traz prejuízos financeiros e de saúde para a população.

O julgamento estabelece que o cânhamo industrial não se enquadra nas proibições da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que restringe substâncias capazes de causar dependência. Segundo a relatora, a legislação internacional também admite exceções para o uso medicinal e industrial de derivados da cannabis, desde que observada a regulamentação de cada país. Portanto, o Estado brasileiro terá de definir as políticas públicas para controle e manejo das variedades de cannabis, incluindo a aplicação específica do cânhamo para fins medicinais.

O tribunal reconheceu a necessidade de regulamentação específica para o cultivo controlado de cannabis com finalidade medicinal, refletindo mudanças no debate público e nos mercados internacionais.

Impacto na saúde pública

A autorização para o cultivo de cannabis medicinal no Brasil tem o potencial de ampliar o acesso a tratamentos para diversas condições de saúde, como epilepsia, dores crônicas, Parkinson e esclerose múltipla. A advogada Flávia Gatti, sócia da área societária e M&A do escritório Simões Pires, destaca que “ao reconhecer o direito ao cultivo para produção de medicamentos, o STJ atende à demanda de pacientes que necessitam de terapias à base de cannabis, viabilizando o acesso mais econômico e rápido a tratamentos para doenças crônicas e condições severas”.

Além disso, a decisão pode reduzir a dependência de importações de medicamentos à base de cannabis, tornando os tratamentos mais acessíveis e menos onerosos para os pacientes e para o sistema de saúde brasileiro. A advogada criminalista Cecilia Mello, desembargadora federal aposentada e sócia do escritório Cecilia Mello Advogados, ressalta que “a ausência de regulamentação interna sobre importação de sementes e cultivo de cânhamo gera dependência de insumos e medicamentos importados, elevando os custos para os usuários e para o próprio sistema de saúde”.

Desenvolvimento econômico e industrial

A autorização para o cultivo de cânhamo industrial abre oportunidades para o desenvolvimento de uma nova cadeia produtiva no Brasil. O cânhamo é uma planta versátil, utilizada na produção de fibras, biocombustíveis, materiais de construção e produtos farmacêuticos. Flávia Gatti observa que “o cânhamo, adaptado ao clima tropical, pode rapidamente ganhar destaque no Brasil pela alta produtividade e versatilidade, tornando-se uma fonte promissora de fibras, biocombustíveis, materiais de construção e produtos farmacêuticos”.

A criação de uma indústria nacional de cânhamo, segundo os especialistas ouvidos por LexLegal, pode gerar empregos, estimular a pesquisa científica e tecnológica e contribuir para a diversificação da economia brasileira. No entanto, é fundamental que a regulamentação seja clara e eficiente para garantir a segurança jurídica e atrair investimentos para o setor.

Desafios regulatórios

Embora a decisão do STJ represente um avanço significativo, a implementação prática do cultivo de cannabis medicinal no Brasil depende da regulamentação por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O tribunal estabeleceu um prazo de seis meses para que a Anvisa elabore as normas específicas para o cultivo e produção de derivados de cannabis no país.

A advogada Beatriz Kestener, do Kestener & Vieira Advogados, alerta que “até que o regulamento efetivamente aconteça e que as normas amadureçam com o debate de todo o setor (e até mesmo de uma possível judicialização), a matéria seguirá em uma zona cinzenta”. Portanto, é essencial que a Anvisa conduza o processo regulatório de forma transparente e participativa, envolvendo todos os stakeholders, incluindo empresas, profissionais de saúde, pacientes e pesquisadores.

A decisão do STJ também levanta questões jurídicas e constitucionais importantes. Patrícia Villela Marino, advogada, presidente do Instituto Humanitas360 e membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, aponta que “houve equívoco dos ministros ao estender os direitos apenas à finalidade médica”. Ela argumenta que a Convenção Única sobre Entorpecentes, firmada pelo Brasil em 1961, afirma que a convenção não se aplica ao cultivo da planta de cannabis exclusivamente para fins industriais (fibra e semente) ou hortícolas.

Além disso, Patrícia Villela Marino considera inconstitucional a tese de que as empresas poderão cultivar o cânhamo para determinada finalidade e não para outras, o que pode resultar em uma batalha jurídica com recursos ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. Ela também destaca que a decisão ainda depende de regulamentação e aprovação da Anvisa, o que aumenta a insegurança jurídica sobre o assunto.

Perspectivas futuras

A autorização para o cultivo de cannabis medicinal no Brasil representa um avanço significativo para as pessoas que necessitam da redução dos preços do canabidiol Estimativas iniciais mostram que a produção nacional poderá reduzir os preços entre 50% e 70% para o consumidor final. A regulamentação pela Anvisa será crucial para definir os parâmetros e requisitos para o cultivo, produção e comercialização de produtos à base de cannabis no país.

Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP, enfatiza que “a regulação da Anvisa autoriza a produção de produtos à base de cannabis desde que a cannabis ‘caia do céu’, ou seja, que seja importada”. Ele argumenta que isso é contrário à Constituição Federal, que determina estímulo ao mercado interno, e que a produção dependente de fornecedores externos torna tudo mais caro para o paciente que necessita de acesso.

A decisão unânime do STJ de autorizar o cultivo de cannabis para fins medicinais, farmacêuticos e industriais no Brasil representa um marco na política de saúde e no desenvolvimento econômico do país. Embora ainda haja desafios regulatórios e jurídicos a serem enfrentados, a medida abre caminho para a criação de uma indústria nacional de cannabis medicinal e cânhamo industrial, com potencial para beneficiar pacientes, estimular a economia e posicionar o Brasil no mercado global de cannabis.

SÃO PAULO WEATHER
Newsletter
Cadastre seu email e receba notícias, acontecimentos e eventos em primeira mão.