Advocacia predatória: efeito corrosivo na justiça e na sociedade nos tempos atuais
Ana Luiza Portela Viana e Wenia Alves Dias*
Nos últimos anos, o Judiciário tem sido sobrecarregado por ajuizamentos em massa, com pedidos genéricos e sem que as partes demandantes tenham plena ciência dos processos em que figuram. Tal prática tem sido denominada advocacia predatória. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através da Recomendação nº 127, de 15 de fevereiro de 2022, preconiza algumas cautelas sobre judicialização predatória, especialmente pelo seu Art. 2º que traz o entendimento dessa prática como “[…] o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão” (Conselho Nacional de Justiça, 2022).
Essas demandas experimentaram um crescimento exponencial com o advento das novas tecnologias no campo do Direito, especialmente com a implementação do processo eletrônico. O sistema eletrônico facilitou a atuação sem fronteiras e proporcionou maior celeridade no trâmite processual. No entanto, essa inovação também trouxe desafios constatados pelo incremento das oportunidades para práticas predatórias e pela proliferação de ajuizamentos indevidos.
Embora o tema seja amplamente conhecido entre os profissionais do Direito, a sociedade em geral ainda dispõe de informações insuficientes sobre a questão.
A falta de comunicação e conscientização do público nesse quesito contribui para a perpetuação e disseminação desses ajuizamentos em massa por todo o Brasil, os quais, em uma competição desleal, visam principalmente a obtenção de lucro.
O público-alvo dessa prática é, em grande parte, composto por pessoas vulneráveis, como idosos, analfabetos e interditados. A vulnerabilidade desses indivíduos é um fator crucial para a ocorrência dessas demandas, pois facilita a exploração e o abuso por parte de advogados predatórios. Estes profissionais visam obter lucros por meio da manipulação e da coação, o que pode levar à inibição da liberdade de expressão e ao comprometimento da justiça.
Em sua grande maioria, essas ações estão relacionadas a instituições financeiras, sendo que o principal objeto de litígio envolve contratos de empréstimo. Muitas dessas demandas questionam cláusulas contratuais, taxas de juros, e outras condições estabelecidas nos contratos de empréstimo, frequentemente alegando abusividade ou irregularidades.
Em outros casos, também se observa a abordagem direta de pessoas com financiamentos ativos, sendo oferecida a promessa irreal de redução das taxas de juros dos seus contratos. O devedor, atraído pela oferta, concede uma procuração a terceiros, que posteriormente vinculam seu nome a um processo judicial alegando a nulidade total do contrato por fraude. Essa prática não só é enganosa, como também
pode levar o devedor a se envolver em litígios infundados e prejudiciais, comprometendo sua situação financeira e jurídica.
Por trás desse fenômeno, também se observa a ocorrência de vazamentos de dados, o que pode explicar a abordagem direta a beneficiários do INSS com empréstimos consignados ativos, inclusive por telefone ou aplicativo de mensagens instantâneas e chamadas de voz, como o ‘WhatsApp’ por exemplo. Esses vazamentos permitem que informações pessoais sejam utilizadas de forma indevida para a oferta de produtos financeiros, muitas vezes sem o devido consentimento dos titulares dos dados.
A identificação dessas demandas é relativamente simples para os profissionais do Direito, uma vez que as peças processuais costumam ser genéricas e desprovidas de fundamentos sólidos, sem estabelecer vínculos substanciais entre as partes envolvidas. A falta de detalhamento e a ausência de provas robustas evidenciam a fragilidade desses processos, facilitando sua detecção por advogados e juízes experientes.
Um exemplo popular
Era uma manhã nublada quando Maria, uma senhora de 75 anos, recebeu uma ligação inesperada. Do outro lado da linha, um homem educado prometia algo que parecia irresistível: uma redução significativa nos juros do empréstimo consignado que ela havia feito. A oferta era tentadora, afinal, sua aposentadoria já mal cobria as despesas mensais. O homem, com voz suave, explicou que tudo o que Maria precisava fazer era assinar uma procuração, e ele e sua organização cuidariam de tudo.
Maria, confiando na promessa de alívio financeiro, assinou o documento. Sem perceber, ela havia acabado de entrar em um jogo perigoso, onde sua situação financeira e sua liberdade estavam em risco.
Nos dias que se seguiram, Maria não ouviu mais falar do homem ou da promessa de juros mais baixos. O que ela não sabia era que seu nome agora estava vinculado a um processo judicial que alegava a nulidade total do contrato de empréstimo por fraude. Maria, sem entender nada, passou a receber notificações do tribunal. Confusa e preocupada, procurou ajuda de um advogado, que logo identificou o
que estava acontecendo.
Maria era mais uma vítima de uma prática que se tornava cada vez mais comum no Brasil: a advocacia predatória. Um fenômeno que, embora revestido de uma fachada legal, na verdade, escondia uma teia de manipulações e abusos.
O auge desse problema surgiu com o aumento significativo dessas práticas, expondo a fragilidade do sistema e a falta de proteção adequada para aqueles que deveriam ser mais amparados pela justiça: os vulneráveis, como Maria. Muitos, como ela, foram atraídos por promessas enganosas, sem saber que estavam sendo usados como peças em um jogo cruel de manipulação jurídica.
Mas, como toda história, essa também encontra seu ponto de virada. A comunidade jurídica começou a perceber o impacto devastador dessas práticas e a agir.
Tribunais superiores, como o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), ao lado do Conselho Nacional de Justiça, formaram comissões e emitiram recomendações para combater a Advocacia Predatória. Medidas foram tomadas para garantir que processos judiciais não fossem apenas rápidos, mas também justos e fundamentados.
O fim dessa história ainda está sendo escrito. Com o aumento da conscientização e a aplicação de sanções rigorosas, o sistema judicial brasileiro busca restaurar sua integridade. E Maria, como muitos outros, espera que aqueles que a enganaram sejam responsabilizados, para que ninguém mais tenha que enfrentar o que ela experenciou.
O que começou com uma promessa enganosa de alívio financeiro transformou-se em uma luta pela preservação da justiça e pela proteção dos mais vulneráveis. E, no desfecho dessa batalha, a esperança é que o sistema judicial saia mais forte, garantindo que cada processo seja tratado com a seriedade e o respeito que merece.
*Ana Luiza Portela Viana é coordenadora no Rennó e Machado Advogados Associados, especializada em Direito Bancário, Cível e Trabalhista e Wenia Alves Dias é advogada sênior no Banco BMG.