A inteligência artificial e o Direito Societário
*Leonardo Barém Leite
Tanto a humanidade como um todo quanto o universo corporativo em particular buscam, permanentemente, a evolução, a maior eficiência e a “modernização” de praticamente tudo o que temos e fazemos, de forma que não podemos nos afastar de novos desafios, novas demandas, e novas propostas.
Uma das principais propostas da atualidade é a presença ainda maior da tecnologia na “nossa vida”, no nosso trabalho e nas nossas relações, e tanto o direito quanto a prática societária não podem deixar de considerar, por exemplo, a chamada Inteligência Artificial, o que ela pode nos trazer como oportunidades, avanços e ganhos de eficiência, assim como os cuidados que devemos tomar, a atenção a dedicar ao tema, e alguns dos desafios que integram essa questão.
Nesse contexto, entendemos que seja natural que uma das primeiras áreas da advocacia a serem questionadas, provocadas e talvez até pressionadas, para avaliar o tema seja a advocacia corporativa, justamente por ser a mais próxima das empresas e do próprio mercado corporativo como um todo, uma vez que a pressão pela eficiência e pela economia (por exemplo de recursos, como tempo e custos).
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Se as empresas buscam novidades e modelos de atuação que lhes permita aproveitar oportunidades e ferramentas, para serem mais eficientes, reduzir custos, e com isso ganharem mais dinheiro, é inegável que seus parceiros e fornecedores sejam chamados (ao menos) a conversar sobre essa questão.
O que nem sempre é lembrado é que oportunidades em geral andam muito próximas de riscos, e que para que decisões melhores sejam tomadas é preciso que “os dois lados da moeda” sejam conhecidos e avaliados.
Nessa linha, quem atua de forma bem próxima a empresas, empreendedores, investidores e executivos sabe que gostam de economizar e de lucrar, e que não se furtam a correr riscos para aproveitar oportunidades, mas que na mesma medida gostam de conhecer os riscos, de forma a atuar para a sua gestão.
No campo do direito e da atuação societária, existem diversos documentos, tarefas, etapas formais e burocráticas, sendo muitas delas, inclusive, “cartoriais” e que há bastante tempo o mercado vem lutando para modernizar, como a questão da automação de formulários, assim como a interação com as juntas comerciais e demais autoridades e repartições públicas; e mesmo no tocante ao próprio relacionamento entre investidores e as empresas.
Nas últimas 3 (três) décadas, por exemplo, a evolução, a automação e a modernização de diversas das tarefas e dos documentos ligados ao direito societário mudaram, e melhoraram bastante, desde os arquivos e registros manuais, os “livros societários”, a lavratura de atas de reuniões e de assembléias em livros (escritos à mão) e dos próprios documentos societários (como contratos e estatutos sociais).
Tanto o direito em termos de legislação e de jurisprudência, quanto as autoridades ligadas ao tema como juntas comerciais e demais registros, bolsas de valores, instituições de custódia, departamentos societários e de acionistas de empresas, assim como de relações com investidores, a comissão de valores mobiliários (CVM) e ainda os advogados e escritórios de advocacia que atuam na área e até mesmo os próprios sócios/acionistas se adaptaram e evoluíram.
Esse movimento de constante reavaliação de práticas e de procedimentos visando melhorias e avanços é positivo, e não nos deve apavorar e nem gerar rejeição injustificada, mas precisa, em nome da cautela, da análise ampla e abrangente, e da responsabilidade, ser “conversado”, estudado e avaliado.
Evitar-se etapas longas, custosas e meramente burocráticas é uma meta de todos, desde que se mantenha os devidos cuidados e a pretendida segurança com os processos e as ferramentas, e a própria correta e adequada atribuição de responsabilidades.
A chegada de recursos importantes ao contexto em tela como computadores, sistemas/softwares, formulários e documentos eletrônicos, tecnologia de comunicação, assinatura digital e tantos “outros” vem ajudando muito na trajetória do aumento da eficiência, mas a Inteligência Artificial integra esse mesmo contexto ou há maior promessa de ganhos e pouco conhecimento sobre os riscos?
Os tipos societários, por exemplo, vêm passando por várias transformações, como por exemplo, o afastamento da máxima de que sociedades por cotas de responsabilidade limitadas eram sociedades de pessoas ao passo em que as sociedades por ações eram de capital (distinção já bastante “adaptada” nos últimos anos), assim como o igual afastamento do conceito de que sociedade pressupunha ao menos duas pessoas (uma vez que já temos a sociedade unipessoal e individual).
E, situação igualmente “evolutiva” vem passando a forma de se convocar e de se organizar as reuniões, divulgar informações, realizar assembléias, colher votos e assinaturas, registrar etc.
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A inteligência artificial “chega“ para assumir alguns papéis nesse contexto, prometendo economia e rapidez, mas talvez ainda sem detalhar quais papeis/tarefas exatamente podem (ou até devem) ser alocadas à tecnologia e quais devem continuar com humanos.
A necessária “padronização” de documentos, práticas, rotinas e tarefas, para que a “máquina” consiga realizar de forma melhor, mais rápida, barata e eficiente do que as pessoas é de fato positiva ou tende a limitar (ou dificultar) a criatividade para lidar com situações, demandas e estratégias diferentes?
Se essa nova etapa da automação funcionar e “der tudo certo” é bem provável que ninguém seja parabenizado, mas nos casos em que não funcionar, quem será responsabilizado? A pessoa (por vezes cliente) que pediu ou determinou a automação? O executivo (por vezes financeiro) que determinou a redução radical de custos? Os advogados que permitiram ou até incentivaram essa nova prática? Quem criou o sistema da inteligência artificial aplicado ou quem o comercializou? Ou quem o escolheu e aplicou?
E se ganhos forem obtidos, certamente investidores ficarão contentes, mas quando houver perdas e prejuízos, quem deve ser responsabilizado?
Numa outra questão, temos acompanhado que a chamada inteligência artificial de fato gera “economias” e rapidez, mas que também erra e até “inventa” muita coisa, sem contar os casos em que analisa informações partindo de premissas equivocadas (ou enviesadas), e ainda que equivocadamente indica aos humanos os pontos principais de documentos e de situações.
Em muitos desses casos, advogados e executivos experientes sabem que não podem e não querem correr ainda mais riscos, especialmente riscos que nem conhecem, de forma que precisam rever e analisar os próprios resultados e “trabalhos” realizados pela inteligência artificial.
Esse necessário cuidado gera retrabalho e por vezes demora mais tempo do que se a tarefa tivesse sido realizada inteiramente por humanos, além de levantar dúvidas sobre o valor e a importância da experiência humana.
Em outras situações, já se fala em investidores artificiais e executivos artificiais/digitais, como por exemplo diretores e conselheiros não humanos, que para muita gente podem ser mais rápidos, mais eficientes, melhores e mais baratos do que as pessoas. E mesmo que reuniões poderão ocorrer não apenas de forma digital e à distância, como entre “sistemas e inteligência artificial” (sem humanos). Mas quem correrá esse risco e o recomendará? E como se fará o “controle” do que pode ou não ser automatizado?
Profissionais e executivos mais experientes e preparados tem proposto que (por enquanto) apenas tarefas mais simples e básicas sejam alocadas à inteligência artificial, e ainda assim de forma supervisionada por humanos, mas o desafio (nesse casos) é estabelecer os limites seguros; e mesmo as novas formas de se treinar novos profissionais que já nem querem estudar e realizar tarefas de formas mais tradicionais (em nome da modernidade, da eficiência e da tecnologia). Sem treinamento adequado, como essas pessoas conseguirão de fato avaliar o que a inteligência artificial realiza ou propõe (ainda que sejam “meras” pesquisas e tarefas aparentemente simples)?
Vivemos uma fase de bastante promessa e discurso, mas que precisa ser enfrentada com muito cuidado e responsabilidade, para que juntos consigamos encontrar as melhores, mais eficientes e mais seguras formas de aproveitar e de usar a tecnologia.
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Contextos e situações semelhantes se aplicam às fusões e aquisições, às “due diligences”, à governança corporativa, ao “compliance”, ao mercado de capitais, ao sistema financeiro – e assim por diante. E nos próximos artigos desta breve série abordaremos alguns deles, com provocações e recomendações de reflexões semelhantes.
Leonardo Barém Leite é sócio sênior do escritório “Almeida Advogados” em SP, especialista em Direito Societário e Contratos, Fusões e Aquisições, Governança Corporativa, Sustentabilidade e ESG, “Compliance”, Projetos e Operações Empresariais, e Direito Corporativo; também é árbitro, professor, conselheiro, e autor de diversas obras. Presidente da Comissão de Direito Societário, Governança Corporativa e ESG da OAB-SP/Pinheiros.