Antonio Cicero e o debate jurídico sobre eutanásia no Brasil
Luciano Teixeira – São Paulo
O falecimento do escritor e filósofo Antonio Cicero, aos 79 anos, ocorrido na manhã desta quarta-feira (23) em Zurique, na Suíça, trouxe à tona um debate relevante sobre a prática da morte assistida no Brasil. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), autor de músicas de sucesso e renomado crítico literário, Cicero sofria de Alzheimer e optou pela eutanásia, uma decisão descrita em uma carta de despedida, onde afirmou: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.” O caso traz à tona debates éticos, bioéticos e jurídicos que cercam a prática da eutanásia.
Fato é que o procedimento de morte assistida, que é legal na Suíça, contrasta com a legislação brasileira, onde a prática é proibida e considerada um crime contra a vida. E isso levanta um debate: qual a autonomia que uma pessoa para decidir a sua própria morte? Existe esse “direito à dignidade” no fim da vida?
Contexto jurídico e bioético da eutanásia
Para compreender as implicações jurídicas e bioéticas da eutanásia, buscamos a análise de um dos maiores especialistas no assunto no Brasil: o advogado Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O especialista explica que, como no Brasil a eutanásia é criminalizada, muitas vezes ela é confundida com homicídio doloso humanitário ou auxílio ao suicídio. “Por conta disso, pacientes ficam sofrendo e perdendo ainda mais a dignidade ou, quando possuem recursos, procuram realizar o procedimento fora do país”, afirma.
A Suíça, onde Cicero escolheu terminar sua vida, permite a prática da eutanásia, inclusive para estrangeiros, desde que sigam os protocolos exigidos pelas clínicas que oferecem o serviço. Vários outros países também legalizaram a prática, como a Espanha, Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Canadá, Nova Zelândia e, mais recentemente, a Colômbia, onde o Poder Judiciário autorizou uma mulher a realizar o procedimento.
Esses países estabeleceram protocolos de segurança para garantir que a decisão de um paciente de recorrer à eutanásia seja bem fundamentada e observada de acordo com os padrões médicos. Os requisitos necessários variam conforme o país, mas, de forma geral, incluem:
- Condição médica incurável: O paciente deve estar em uma condição terminal ou sofrer de uma doença incurável e irreversível, que cause grande sofrimento físico ou psíquico.
- Consentimento informado: O paciente deve estar plenamente consciente e capaz de tomar decisões, dando seu consentimento de forma livre e informada.
- Avaliação médica: A decisão deve ser validada por um ou mais médicos, que confirmam a gravidade da condição e a irreversibilidade da situação.
- Exames psicológicos: Em muitos casos, o paciente deve passar por uma avaliação psicológica para garantir que a decisão de recorrer à eutanásia não seja fruto de uma depressão ou condição tratável.
- Pedido formal e reiterado: O paciente precisa fazer o pedido de eutanásia de forma clara e reiterada, por escrito, em intervalos de tempo definidos, para garantir que a decisão é persistente.
Esses protocolos visam assegurar que a decisão seja bem fundamentada e ética. “Eles devem ser observados para que não se torne uma prática fútil, indevida e desnecessária”, avalia Fürst.
A questão da dignidade e da autonomia
Henderson Fürst defende que a eutanásia, quando realizada com estes protocolos, representa uma proteção à dignidade humana e à autonomia do paciente. “O entendimento que não acolhe pacientes é pautado pelo tabu de falar seriamente sobre a morte ou por vieses religiosos que não compreendem os valores do paciente e sua compreensão da vida”, diz. Segundo o advogado, o debate sobre a eutanásia muitas vezes se entrelaça com questões culturais e religiosas, o que dificulta a criação de uma legislação que respeite a pluralidade de valores e a autonomia individual.
Do ponto de vista bioético, a questão da eutanásia envolve um equilíbrio entre o princípio da autonomia, que valoriza a decisão pessoal do paciente sobre o seu corpo e o fim da vida, e o princípio da beneficência, que preza pelo cuidado e bem-estar do paciente. Muitos bioeticistas que apoiam a eutanásia destacam que, em situações de sofrimento irreversível, permitir que o paciente tenha controle sobre sua morte é uma extensão lógica do direito à dignidade.
Cicero, que lidava com o agravamento do Alzheimer, teve recursos para buscar uma alternativa legal em outro país. A exposição deste tipo de morte, algo que foi destacado pelos principais veículos de comunicação do país nesta quarta-feira (23), acaba, como consequência, levantando a questão de como o Brasil deve lidar com a crescente demanda por uma legislação que possibilite a eutanásia dentro de suas fronteiras.
A exposição pública dadecisão do escritor também coloca em evidência a necessidade de maior debate público e legislativo sobre o tema. No Brasil, como não existe espaço legal para que pacientes terminais ou com condições debilitantes tomem essa decisão de forma autônoma e digna, isso leva muitas pessoas a enfrentar longos períodos de sofrimento, sem a possibilidade de recorrer a uma alternativa que seja vista por alguns como mais humana.
“No Brasil, por ser um crime contra a vida, os riscos jurídicos-criminais são altíssimos, especialmente num momento de grande criminalização indevida da medicina”, destaca o advogado. Esta realidade faz com que médicos e familiares, por temerem possíveis implicações legais, hesitem em considerar qualquer forma de alívio ao sofrimento do paciente por meios que envolvam a antecipação da morte.
Para Fürst, a criminalização da eutanásia impede que o Brasil avance no reconhecimento de um direito fundamental à dignidade e à autonomia dos pacientes terminais. Ele defende que a legalização da prática, acompanhada de protocolos básicos, poderia proporcionar uma forma de aliviar o sofrimento de pacientes em estado incurável. “Eu sou favorável e luto pelo direito de que pacientes que preencham determinados requisitos possam ter acesso à eutanásia perto de seus familiares, em solo brasileiro, protegendo sua dignidade, autonomia e biografia mesmo nos momentos mais difíceis”, afirma.