Regulamentação das ações de publicidade no mercado das bets: e agora?
Julia Klarmann, Laura Cunha Gonçalves e Rodrigo Cantali*
Desde a entrada em vigor da Lei 13.756/2018, que criou a modalidade de apostas de quota-fixa, e da Lei 14.790/2023, que regulamentou essa modalidade, muito se questiona sobre ações de publicidade e marketing no mundo das bets. Notícias indicam aumento exponencial na veiculação de peças publicitárias voltadas ao setor, em investimentos superiores a R$ 2 bilhões; que ao menos 5% da receita do mercado das bets – que já representaria 1% do produto interno bruto brasileiro – seria destinada para ações publicitárias; e mudanças no comportamento financeiro de apostadores, o que seria decorrente dessa publicidade.
O quadro normativo da publicidade das bets encontrou seu ápice apenas no início de agosto de 2024, a partir da publicação da Portaria nº 1.231/2024 pela Secretaria de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da Fazenda (“SPA/MF”). A partir de 1º de janeiro de 2025, apenas empresas autorizadas a operar no Brasil poderão realizar ações de publicidade, e a Portaria busca assegurar uma saudável relação entre apostador e empresa de bets, o que inclui a forma de fazer publicidade. Aquelas operadoras que se desviarem desse objetivo poderão ser responsabilizadas por publicidade abusiva e/ou enganosa.
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A Lei 13.756/2018 estabeleceu que as ações de publicidade devem ser pautadas pelas “melhores práticas de responsabilidade social” – sem, no entanto, defini-las. A isso, somavam-se as disposições do Código de Defesa do Consumidor, que, apesar de maior detalhamento, utiliza-se de conceitos gerais na definição de publicidade “enganosa” ou “abusiva”: por enganosa, entende-se a publicidade que dispõe de informações inteira ou parcialmente falsas, ou que induzam em erro o consumidor quanto à natureza, às características, à qualidade, à quantidade, às propriedades, à origem, ao preço ou outros dados sobre o serviço; por abusiva, entende-se a publicidade que seja discriminatória, que incite à violência, que explore o medo ou a superstição, que se aproveite de deficiência de julgamento e experiência de menores de idade, ou que induza o consumidor a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança.
A questão recebeu nova atenção em julho de 2023, com a edição da Medida Provisória nº 1.182, que incluiu importantes artigos à Lei 13.756/2018, incluindo, por exemplo, o incentivo à autorregulação por meio da atuação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (“CONAR”) e a promoção de ações informativas de conscientização dos apostadores e de prevenção do transtorno do jogo patológico.
No entanto, a Medida Provisória teve seu prazo de vigência encerrado em novembro de 2023, sem que tais alterações tivessem se concretizado no texto da lei. Foi em dezembro de 2023 que a questão recebeu novo sopro de vida, tanto por meio do Anexo X ao Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (“CBAP”) do CONAR, quanto pela edição da Lei nº 14.790/2023.
Quanto ao Anexo X do CONAR, as suas disposições foram construídas a partir de quatro pilares: (1) o pilar a identificação publicitária, (2) o pilar da veracidade da informação, (3) o pilar da proteção de vulneráveis e (4) o pilar da responsabilidade social e do jogo responsável. A medida veio em momento oportuno, pois deu início a um processo de concretização do significado das expressões “publicidade socialmente responsável” e “melhores práticas de responsabilidade social”, utilizadas na legislação antes mencionada, mas que pecavam por sua excessiva abstração. A partir disso, estabeleceu-se, por exemplo, que as peças publicitárias devem ser facilmente identificáveis e reconhecíveis como tal no mercado; não devem conter informações enganosas ou irrealistas; deverão conter indicação de que a atividade é proibida a menores de idade; entre outras medidas.
A Lei 14.790/2023 corroborou tais disposições, ao legalmente proibir a veiculação de ações publicitárias que (i) veiculem afirmações infundadas sobre as probabilidades de ganhar ou sobre os possíveis ganhos que os apostadores poderiam esperar; (ii) apresentem a aposta como atividade socialmente atraente ou que sugiram sua realização para fins de êxito pessoal ou social; (iii) sugiram apostas como alternativa a emprego ou como solução para problemas financeiros; (iv) promovam discriminação; (v) promovam marketing em escolas e universidades ou dirigida a menores de idade.
O “tempero” final – pelo menos, até o momento – foi adicionado a esse contexto em agosto de 2024, com a edição, pela SPA/MF, da Portaria 1.231/2024, que estabelece as diretrizes para o jogo responsável e para as ações de comunicação, de publicidade e propaganda e de marketing. No entanto, apesar dessa melhor definição ao significado de jogo responsável a pautar as ações publicitárias no mercado de apostas, passou-se a discutir no Senado Federal a possibilidade de vedação de qualquer forma de publicidade (PL 3.563/2024).
A discussão não se limita às fronteiras brasileiras: já existem discussões a esse respeito na Austrália – país com mais apostas per capita do mundo – e em países da Europa, como o Reino Unido – onde estão sediadas a maior parte das empresas de bets. Passa-se a questionar, assim, qual seria o melhor caminho para conciliar os interesses dos consumidores-apostadores e da livre iniciativa: a proibição ou a regulamentação somada à conscientização.
Por ora, o caminho perseguido pela legislação brasileira é o do estabelecimento de regras claras que determinem, por exemplo, que peças publicitárias não podem sugerir a obtenção de ganho fácil, associar apostas a ideias de sucesso, aptidões extraordinárias ou virtudes, ou associar apostas a soluções para problemas financeiros; que peças publicitárias não podem se aproveitar do apelo a grupos vulneráveis, com participação de menores de idade ou utilização de símbolos lúdicos, ou veiculação em espaços em que menores de idade constituem a principal audiência; que peças publicitárias devem conter cláusulas de advertência referentes à restrição etária e aos riscos de dependência e de transtornos do jogo patológico, entre outras medidas previstas na Portaria 1.231/2024 e no Anexo X do CBAP.
As regras e diretrizes estabelecidas a partir da Portaria 1.231/2024 não vieram para dificultar o acesso das empresas de bets ao mercado publicitário. Muito pelo contrário, elas reforçam a segurança jurídica, trazendo maior clareza sobre o que pode ser feito, sobre as diretrizes que guiam igualmente todas as empresas de bets, sobre o que é lícito e o que é ilícito e a possibilidade de fiscalização pelos órgãos governamentais, e, igualmente, sobre a importância da conscientização do público apostador de que se está diante de um mercado de entretenimento – que, por isso mesmo, como mercado de entretenimento deve ser visto.
Para que a regulamentação brasileira dê certo, todos os seus agentes (órgãos governamentais, empresas operadoras, intermediadoras de pagamento, apostadores) terão de colaborar entre si. As regras vieram para proteger todos aqueles envolvidos no mercado – apostadores, operadores, o mercado, a sociedade como um todo.
A existência de um mercado adequadamente regulado, com regras bem estabelecidas, é o primeiro passo para se garantir que isso aconteça. Três passos seguintes serão decisivos. Um deles diz respeito à fiscalização quanto ao cumprimento dessas regras, que será feita não apenas pela SPA/MF, a partir de procedimento administrativo sancionatório próprio, mas também pelos órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (“SNDC”), tendo em vista, inclusive, que a própria Lei 14.790/2023 estabelece em seu artigo 27 que “são assegurados aos apostadores todos os direitos previstos” no Código de Defesa do Consumidor. A fiscalização é importante e necessária, pois certamente contribuirá para retirar do mercado os players que estiverem em desconformidade com as regras do jogo e, portanto, em desigualdade de condições com as demais empresas.
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O segundo passo diz respeito à conscientização da população, uma das maiores preocupações do SNDC, que deve compreender estar diante de um mercado do entretenimento. Não se trata de uma alternativa ao emprego, nem de um meio de enriquecimento, muito menos de uma atividade cuja realização ateste a existência ou inexistência de uma determinada virtude
O terceiro passo, intimamente vinculado ao anterior, diz respeito à conduta das próprias bets (e respectivas agências de marketing e publicidade), pois as suas peças publicitárias deverão estar em conformidade com as regras e diretrizes estabelecidas pelos órgãos competentes. O apostador deve identificar facilmente que determinado anúncio constitui peça publicitária; a peça publicitária não deve difundir informações enganosas; a peça publicitária não deve se aproveitar de grupos vulneráveis; a peça publicitária deve conscientizar o público apostador quanto aos riscos associados aos riscos de dependência e de transtornos do jogo patológico. O atendimento a tais pilares será crucial para o bom desenvolvimento e manutenção desse mercado tão interessante e complexo, bem como para garantir a sustentabilidade das ações de publicidade a longo prazo.
*Julia Klarmann, Laura Cunha Gonçalves e Rodrigo Cantali, sócios da área de Consumidor do Souto Correa Advogados.