Justiça gratuita: direito fundamental ou incentivo à advocacia predatória?

Justiça gratuita: direito fundamental ou incentivo à advocacia predatória?
Sob o pretexto da gratuidade, ações são ajuizadas sem qualquer responsabilidade ou análise prévia de mérito, impulsionando um volume processual que ameaça a eficiência do sistema/Pixabay
Publicado em 07/11/2024 às 12:31

Lívia Linhares*

A justiça gratuita, um pilar indispensável para garantir o acesso de todos ao Poder Judiciário, tornou-se, paradoxalmente, um dos vetores do aumento desenfreado da litigiosidade no Brasil. O que deveria ser um instrumento de equidade, assegurando que os economicamente vulneráveis possam buscar seus direitos, tem sido cada vez mais utilizado de maneira predatória.

Sob o pretexto da gratuidade, ações são ajuizadas sem qualquer responsabilidade ou análise prévia de mérito, impulsionando um volume processual que ameaça a eficiência do sistema. Diante desse cenário, é urgente refletir sobre o equilíbrio entre o legítimo direito de acesso à Justiça e a necessidade de coibir abusos que comprometem o funcionamento do Judiciário e a efetividade das decisões.

A banalização desse benefício demanda uma revisão crítica de sua aplicação, principalmente em um contexto de crescente judicialização, onde a advocacia predatória encontra terreno fértil para prosperar.

Nos Juizados Especiais, criados com o objetivo de simplificar o acesso à Justiça e acelerar a resolução de litígios, a situação é ainda mais preocupante. O propósito inicial de democratizar o sistema judiciário tem sido desvirtuado, com muitos advogados ajuizando ações sem embasamento sólido, contando com o protocolo permissivo e o baixo custo ou ausência de riscos financeiros, o que incentiva a proliferação de “aventuras jurídicas”.

A advocacia predatória se caracteriza justamente pela prática de ingressar com ações sem uma real expectativa de êxito, muitas vezes visando apenas pressionar a outra parte a buscar acordos para evitar o desgaste processual. Quando se somam a isso a justiça gratuita e a ausência de uma análise mais rigorosa dos requisitos para a concessão desse benefício, o impacto no volume processual é significativo. O Judiciário acaba sendo sobrecarregado por demandas que, se tivessem custos envolvidos, provavelmente não seriam ajuizadas.

Dados divulgados em 2023 pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), reforçam a urgência dessa reflexão. A pesquisa revelou importantes contradições nos critérios de concessão da justiça gratuita, evidenciando que, na prática, o benefício nem sempre é concedido com o rigor necessário quanto ao requisito de hipossuficiência econômica.

Além disso, observou-se que muitos magistrados não justificam adequadamente suas decisões ao conceder ou negar o benefício, o que resulta em uma falta de uniformidade nas decisões. O estudo também revelou uma variação significativa nos critérios adotados, sem uma padronização clara, permitindo a concessão da gratuidade em causas de valores elevados, sem análise criteriosa da capacidade econômica dos autores.

Essas informações sustentam a conclusão de que a concessão indiscriminada da justiça gratuita pode incentivar o aumento da litigância predatória, sobrecarregando o Judiciário com ações infundadas ou que não passariam pelo crivo do mérito se houvesse custos envolvidos. Isso reforça a necessidade de revisar os critérios de concessão do benefício, visando maior coerência no sistema e preservando o propósito de inclusão para os que realmente necessitam.

Em linha com essa discussão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou recentemente um ato normativo com medidas específicas para identificar e combater a litigância predatória no sistema judiciário. Assinado pelo presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, e pelo corregedor nacional de Justiça, Mauro Campbell Marques, o ato classifica como predatórias as ações sem lastro, as demandas fragmentadas e os comportamentos processuais abusivos, como a proposição de várias ações sobre o mesmo tema ou pedidos com valores de causa desproporcionais.

A medida também prevê o uso de inteligência de dados para monitorar e detectar padrões de litigância abusiva, além de promover métodos alternativos de resolução de conflitos, como mediação e conciliação.

A ação do CNJ está alinhada com a necessidade de coibir a advocacia predatória que tem explorado a justiça gratuita de forma indevida, sobrecarregando o sistema com ações oportunistas e sem fundamento. A implementação dessas novas diretrizes também representa um passo crucial para assegurar que a justiça gratuita seja destinada a quem realmente precisa, protegendo a integridade do Judiciário e permitindo que ele se concentre na resolução de litígios legítimos.

A banalização do benefício não apenas sobrecarrega o sistema, mas também desvirtua o propósito original, que é garantir que aqueles em situação de vulnerabilidade tenham seus direitos preservados.

Portanto, uma revisão crítica da aplicação da justiça gratuita torna-se essencial para que ela continue sendo um instrumento de inclusão, sem ser manipulada por aqueles que a utilizam de forma abusiva. Nesse contexto, o recente ato normativo aprovado pelo CNJ é uma resposta contundente às práticas predatórias que comprometem a eficiência do sistema judiciário.

Ao estabelecer medidas para identificar, tratar e prevenir a litigância predatória, o CNJ busca garantir que os recursos judiciais sejam usados de forma adequada e direcionados a quem realmente necessita de assistência, preservando a integridade do acesso à Justiça.

Preservar a justiça gratuita para quem verdadeiramente precisa não é apenas uma questão de justiça social, mas uma estratégia vital para assegurar que o Judiciário possa se concentrar em demandas legítimas, promovendo um sistema mais ágil e eficaz.

*Lívia Linhares é sócia e responsável pelo Contencioso do Bhering Cabral Advogados.

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