Tecnologias dominadas pelas big techs colocam a democracia em risco em várias frentes
Ivanir Ferreira*
As novas tecnologias não são neutras e exercem implicações diretas na dinâmica social, política e econômica, colocando em risco, inclusive, a democracia. A análise é do cientista político Luís Fernando Vitagliano, que produziu sua pesquisa de doutorado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. O pesquisador argumenta que, ao afetar tanto a esfera pública quanto o setor privado, as tecnologias emergentes, como a internet, as redes sociais e a inteligência artificial são instrumentos que podem ser usados para manipular opiniões, controlar e direcionar o comportamento das pessoas.
A pesquisa com o título Paradoxos da Democracia na Era Digital propõe uma reflexão dos paradoxos e limites éticos das novas tecnologias e seu impacto na organização política e na democracia contemporânea. Um dos paradoxos discutidos na tese é que “nunca tínhamos tido tanto acesso à informação, mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão mal informados”, alerta Vitagliano. Segundo o pesquisador, isso ocorre em grande parte pela saturação dos dados que circulam na internet, que, em vez de promover uma compreensão mais profunda dos assuntos, acaba os tornando mais difícil de distinguir. Os robôs operados por grandes empresas de tecnologia (asbig techs – Meta, Microsoft, Amazon, Google, Apple) monitoram, avaliam e influenciam o comportamento dos usuários, direcionando o acesso à informação, aos debates políticos e às decisões dos cidadãos.
Segundo a pesquisa, no campo político, o impacto das novas tecnologias pode ser observado na forma como elas influenciam os resultados das eleições e o processo democrático no mundo inteiro. As redes sociais, por exemplo, tornaram-se canais cruciais para campanhas políticas, mas também para a disseminação de desinformação e manipulação de narrativas. A capacidade de segmentar audiências de forma precisa e em tempo real oferece um poder significativo aos grupos que controlam essas plataformas, permitindo que direcionem informações e até mesmo criem realidades paralelas. No setor privado, as implicações também são profundas. Empresas como Google, Meta (Facebook, WhatsApp, Instagram), Amazon, Microsoft e Apple não apenas dominam vastos mercados, mas também possuem um controle sobre informações pessoais de bilhões de pessoas, colocando em risco sua privacidade e aumentando o poder das corporações sobre os indivíduos.
Direita e esquerda: quem mais se beneficia da lógica digital?
Segundo o pesquisador, grupos conservadores de direita têm se beneficiado de maneira bastante eficaz da lógica da era digital. Com um uso hábil das redes sociais e das tecnologias de segmentação, grupos conservadores e de extrema-direita conseguem atingir seu público de forma mais direta e mobilizada. Ao explorar os algoritmos das plataformas, que priorizam conteúdos polêmicos e de grande apelo emocional, esses grupos conseguem ampliar seu alcance e influência.
Além disso, a comunicação simplificada e polarizadora, característica de muitos discursos à direita, se adapta bem ao formato das redes, o que facilita a disseminação de suas mensagens. Segundo o pesquisador, “essa dinâmica tem contribuído para a ascensão de líderes com esse perfil em diversos países, incluindo Estados Unidos, Inglaterra, Turquia, Alemanha, Hungria, Polônia, Itália, França, Argentina e Brasil”.
Em resposta sobre o que ocorreu com os grupos progressistas, o cientista político afirma que, com o surgimento da internet, havia um otimismo sobre seu potencial disruptivo em relação aos monopólios da comunicação. As esquerdas passaram a ver as redes como uma ferramenta de emancipação. No entanto, rapidamente o capital impôs sua lógica, utilizando grandes investimentos para dominar o espaço digital e impor sua agenda. Atualmente, alguém com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça não se sustenta. Ele precisa de impulsionamento, de estar em sintonia com as big techs e ter assessoria profissional para se destacar na vastidão digital. As grandes plataformas monopolizaram o fluxo de dados e controlam a audiência pública. As agendas progressistas foram ofuscadas, em parte, pela prevalência de uma ética do empreendedorismo individualista e neoliberal. Hoje, a internet reflete os interesses de quem a domina: [as empresas do] Vale do Silício e seus CEOs, relata.
Vitagliano reconhece a importância das big techs no desenvolvimento e inovação da sociedade, mas alerta que essas contribuições não lhes dão o direito de impor suas próprias dinâmicas sociais ao mundo analógico. Ele afirma que a interferência política dessas empresas, no sentido de determinar sua visão de sociedade, precisa ser urgentemente contida, pois isso afeta diretamente no funcionamento da democracia.
Responsabilização das big techs
O professor Marco Bettine, da EACH, orientador da pesquisa, critica a falta de aprofundamento nas investigações pelas autoridades brasileiras no que diz respeito à responsabilização das plataformas digitais, como Facebook, Google, Amazon, Twitter, WhatsApp e Telegram. Segundo o pesquisador, são as grandes empresas de tecnologia que deveriam ser prioritariamente fiscalizadas e punidas porque são elas que mais lucram com os negócios digitais, através uso indevido do acesso à privacidade dos indivíduos, da manipulação de algoritmos e personalização de conteúdos com fins comerciais (publicidade direcionada, engajamentos e monetização de dados). No entanto, as investigações são incipientes e concentradas apenas nos usuários e em casos isolados de notícias falsas, sem abordagem do papel das plataformas.
O pesquisador explica que em países como Alemanha, França, Inglaterra e Austrália, onde a regulação da internet é mais rígida, as grandes empresas de tecnologia são obrigadas a ser transparentes e abrir os dados para que as autoridades públicas possam monitorar, por exemplo, o aumento do fluxo de informações sobre certos temas, características típicas da disseminação de notícias falsas. Essa transparência, para Bettine, permite um acompanhamento mais eficaz do conteúdo que circula nas redes sociais, ajudando a identificar e conter a propagação de conteúdos extremistas.
Leis Brasileiras de regulação da Internet
No Brasil, desdobramentos das leis que regulamentam o uso da internet caminham a passos lentos no Congresso Nacional – Fotomontagem feita pelo Jornal da USPcom informações do pesquisador
Marketing político – indução e sugestão
Segundo a pesquisa, diferentes abordagens comportamentais de marketing político são usadas para trabalhar os dados de usuários no ambiente digital para influenciar padrões de comportamentos. Uma delas é de Frederic Skinner (1904-1990), psicólogo norte-americano que criou uma proposta filosófica sobre o comportamento humano que se baseia em dois elementos: indução e sugestão.
Para exemplificar, Vitagliano conta a história de como uma agência de publicidade padrão fazia para aumentar as vendas de Coca-Cola nos cinemas: mudava-se o ponto de venda do refrigerante, faziam-se anúncios antes do filme e colocavam indicações em vermelho próximo ao produto. Com a estratégia de marketing político baseado no comportamento, o foco da publicidade passou a ser feito no público-alvo, ou seja, para se vender mais Coca-Cola no cinema foi colocado mais sal na pipoca e foi aumentada a temperatura das salas de exibições de filme, o que resultou em sucesso de venda do refrigerante.
De acordo com o estudo, essa mesma estratégia é utilizada por meio das plataformas digitais criando subterfúgios para induzir comportamentos nos usuários, direcionando suas escolhas para determinados candidatos ou ideias. No contexto de um debate eleitoral na Europa, por exemplo, se o adversário for a favor de uma postura mais tolerante em relação à migração, uma das estratégias seria a disseminação de fake news sobre violência atribuída a imigrantes, como alegações falsas de gangues ou assassinatos cometidos por eles.
Esse tipo de conteúdo visa a reforçar o preconceito contra imigrantes e criar um clima de medo, o que pode alterar a percepção pública sobre o tema. Ao impulsionar esse tipo de narrativa nas redes sociais, a questão da migração, que originalmente poderia ser vista como marginal em uma eleição, ganha centralidade. O impacto do impulsionamento nas redes sociais permite que essas mensagens se espalhem rapidamente e, assim, isso pode influenciar a opinião pública, revertendo votos e colocando a questão no centro do debate eleitoral.
O estudo traz outros exemplos de manipulação de informação no campo político como o ataque ao Capitólio, o centro legislativo dos Estados Unidos, em 2021. Na época, Donald Trump incitou pelas redes sociais radicais republicanos a invadirem o Capitólio em protesto contra os resultados das eleições presidenciais que davam Joe Biden como vitorioso; e o ataque em 8 de janeiro de 2023 no Brasil, quando bolsonaristas extremistas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. O ato antidemocrático que tinha como pano de fundo o protesto contra a vitória de Luís Inácio Lula da Silva foi combinado pelas redes sociais.
“Jamais fomos modernos”
A pesquisa também questiona se a era digital não estaria fazendo uma reedição do passado com novos mecanismos de dominação social. Uma das teorias usadas como base pela pesquisa foi a do antropólogo Bruno Latour, que diz que “jamais fomos modernos”, referindo-se à renovação dos discursos autoritários do passado como a bandeira “Deus, pátria e família” retomada por movimentos políticos conservadores de linha cristã. Segundo o orientador da pesquisa, esse jargão reeditado no governo de Jair Bolsonaro foi o mesmo da campanha de desestabilização do governo João Goulart deposto em 1964 pela ditatura militar.
Neste contexto, o professor Bettine não espera grandes mudanças no cenário político para os próximos anos, especialmente no Brasil, cujos desdobramentos das leis que regulamentam o uso da internet caminham a passos lentos no Congresso Nacional. Para o professor, a solução passa pela regulação do uso da internet, exigindo maior transparência e responsabilização das grandes empresas que atuam no setor da tecnologia.
A tese Paradoxos da Democracia na Era Digital foi defendida em maio de 2024 pelo Programa Acadêmico Interdisciplinar em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado.