Os desafios regulatórios do mercado de streaming no Brasil
Luciano Teixeira – São Paulo
O mercado de streaming no Brasil está em expansão, mas enfrenta desafios regulatórios e jurídicos que podem influenciar diretamente seu futuro: desde questões de tributação até o fomento à produção nacional, passando por direitos autorais e combate à pirataria. A ausência de um marco regulatório específico gera insegurança para players nacionais e internacionais. Para especialistas ouvidos por LexLegal, a modernização das leis é essencial para consolidar um ambiente equilibrado e sustentável.
Nos últimos anos, o Brasil se destacou como um dos principais mercados de streaming do mundo, atraindo gigantes como Netflix, Amazon Prime Video, Disney+ e HBO Max. A pandemia de Covid-19 acelerou ainda mais o crescimento, com o número de assinantes e o consumo de conteúdo digital alcançando níveis recordes.
Apesar desse cenário promissor, a legislação vigente não acompanhou o ritmo do desenvolvimento tecnológico. A Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998), criada em um período anterior à ascensão do streaming, não aborda especificidades como licenças para reprodução digital contínua. Isso tem gerado disputas legais, como a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que considerou o streaming de músicas uma forma de execução pública, aumentando os custos operacionais das plataformas.
Para a advogada Luciana Minada, sócia especialista em propriedade intelectual e direito do entretenimento do Kasznar Leonardos, o cenário jurídico nacional é complexo e precisa de ajustes.
“Diante da inexistência de uma legislação específica, as plataformas de streaming por vezes se deparam com desafios como a negociação com os diversos titulares de direitos autorais, como produtoras, distribuidoras e artistas, a adequada precificação dos serviços oferecidos, que deve refletir não apenas o modelo de negócio da empresa, mas também o cenário jurídico e tributário local, bem como a segurança das informações e dados coletados de seus usuários, especialmente considerando as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados e a importância de uma governança de dados eficaz”, diz.
Tributação: um gargalo para o setor
A tributação do streaming no país é um dos pontos mais debatidos no Congresso Nacional. Propostas como o Projeto de Lei (PL) 2331/2022 sugerem alíquotas de 3% ou inferiores, dependendo do faturamento anual da empresa. Isso é muito abaixo das taxas aplicadas em países como Espanha (21%) e Reino Unido (20%). Para muitos analistas, essa disparidade cria um ambiente de concorrência desleal com outros segmentos da indústria audiovisual.
“A tributação é, sem dúvida, o principal desafio. Ela interfere diretamente no modelo de negócios e na capacidade de inovação das plataformas. Resolver essa questão de forma equilibrada é essencial para o crescimento do setor”, afirma Fernando de Assis Torres, sócio do Dannemann Siemsen e especialista em streaming e direitos autorais.
Incentivo à produção nacional: lições internacionais
Enquanto países como França e Canadá exigem cotas de produção local nos catálogos das plataformas, o Brasil ainda carece de políticas públicas robustas nesse sentido. A Lei do Audiovisual e a Lei Rouanet têm sido os principais instrumentos de fomento à produção nacional, mas suas aplicações ao streaming são limitadas.
A Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), que regula a TV por assinatura no Brasil, é um exemplo de sucesso que poderia ser adaptado ao streaming, segundo os advogados consultados. Desde sua implementação, em 2011, a obrigatoriedade de exibição de conteúdo nacional ampliou significativamente a produção audiovisual brasileira.
Modelo de remuneração
De acordo com Luciana Minada, o modelo de remuneração baseado em visualizações pode não ser o mais vantajoso para os criadores de conteúdo, na medida em que fica exclusivamente atrelado à projeção quantitativa do conteúdo e ao nível de engajamento (algo que é influenciado, dentre outros motivos, pelos próprios algoritmos da plataforma), dificultando o acesso daqueles que produzem obras e conteúdos de menor apelo comercial ou que ainda não conseguem atingir grandes audiências.
Em outras palavras, segundo a especialista, esse modelo de remuneração tende a concentrar a renda nos criadores mais populares, o que pode prejudicar a diversidade e até mesmo a qualidade do conteúdo disponibilizado nas plataformas.
“Algumas alternativas que poderiam ser mais justas para os criadores de conteúdo incluem a remuneração por tempo de exibição, ao considerar o tempo que cada obra fica disponível na plataforma, e não apenas o número de visualizações”, diz Minada.
Ela também destaca outras possibilidades, como o pagamento fixo por obra, ao estabelecer um valor determinado a ser pago aos criadores, independentemente do número de visualizações. Há ainda os sistemas híbridos, que combinam diferentes modelos de remuneração para garantir uma maior justiça e equilíbrio na distribuição dos rendimentos.
Acessibilidade e combate à pirataria
Outro desafio importante é a inclusão de recursos de acessibilidade, como áudio descrição, closed captions e tradução em libras. “Isso apresenta desafios técnicos, considerando a quantidade de conteúdo disponível e a necessidade de sincronização adequada”, avalia Torres.
Um projeto de lei em tramitação no Senado busca tornar obrigatória a disponibilização desses recursos em todos os conteúdos oferecidos por streaming, seguindo modelos já adotados para cinemas. Embora a proposta tenha recebido apoio de entidades de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, plataformas argumentam que os custos de implementação podem ser significativos.
A pirataria digital continua sendo uma das maiores ameaças ao mercado de streaming. Cópias ilegais de conteúdo prejudicam as plataformas e os criadores de conteúdo, que perdem receitas significativas. Apesar de avanços, como o Marco Civil da Internet e a Lei de Direitos Autorais, o combate ao crime exige medidas mais eficazes.
“É essencial adotar uma abordagem integrada que combine medidas legais modernas, uso de tecnologias avançadas e iniciativas de conscientização pública”, afirma Raquel Barros, coordenadora da equipe de antipirataria e brand protection do Kasznar Leonardos.
A advogada defende a a aplicação de penalidades mais severas para quem lucra com a pirataria e a criação de mecanismos mais ágeis, como medidas administrativas de bloqueio de conteúdo ilegal. “Essas medidas podem ser implementadas com a participação de agências reguladoras como Anatel e Ancine, respeitando seus respectivos escopos de atuação. Por exemplo, permitir que conteúdos ilegais sejam bloqueados automaticamente, após denúncia do titular dos direitos, eliminando a necessidade de uma ordem judicial em casos evidentes. Ou seja, aprimorar o que a Anatel já está fazendo e passar a contar com o suporte da Ancine também”.
Além disso, é crucial estabelecer parcerias com bancos e plataformas de pagamento para interromper fluxos financeiros ligados à atividade criminosa. A responsabilização de intermediários, como serviços de hospedagem e servidores de aplicação, também fortaleceria significativamente o enfrentamento desses crimes, criando incentivos para que essas empresas cooperem na remoção e bloqueio de conteúdo ilegal.
Contratos de exclusividade
Os contratos de exclusividade são também uma área sensível ao setor. Plataformas buscam garantir direitos exclusivos sobre produções populares para atrair assinantes, mas a falta de clareza nas cláusulas pode gerar conflitos.
“No caso de conteúdo global, como filmes ou músicas, a exclusividade ajuda a fidelizar o público a uma plataforma específica. Se os contratos não definem claramente limites territoriais e temporais, podem surgir problemas, especialmente em situações de pirataria ou acesso via VPN a conteúdos disponíveis em outros países”, destaca Torres.
A transparência nos dados de audiência também é uma demanda crescente entre criadores de conteúdo, que reivindicam maior equidade na distribuição de royalties.
O futuro da regulação no Brasil
Com o mercado de streaming em expansão, o Brasil tem uma oportunidade de se posicionar como líder global no setor audiovisual. Para isso, é fundamental implementar um marco regulatório que promova a tributação justa, incentive a produção nacional e garanta direitos equitativos para criadores e plataformas.
Cabe agora ao Congresso Nacional e ao governo federal liderar o processo de transformação do setor, garantindo que o streaming beneficie não apenas as empresas, mas também a cultura e a economia brasileiras.