OAB entra no debate das câmeras corporais em SP e faz críticas ao governo de Tarcísio de Freitas
Luciano Teixeira – São Paulo
A Comissão Especial de Segurança Pública da OAB-SP divulgou um relatório abordando questões relacionadas à violência policial no estado. O documento, elaborado com a contribuição de entidades da sociedade civil, traz críticas e recomendações para a gestão da segurança pública paulista, com foco no uso de câmeras corporais, políticas de uso da força e fortalecimento de órgãos de fiscalização.
O relatório apresenta dados que reforçam a relevância das câmeras corporais no monitoramento das atividades policiais. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2019 e 2022, a mortalidade por intervenção policial em São Paulo caiu 62,7%. O índice foi ainda mais expressivo nos batalhões que utilizavam câmeras corporais, com uma redução de 76,2%, em contraste com a queda de 33,3% nas unidades que não utilizavam a tecnologia.
“As evidências apontam também a redução dos casos de agressões contra policiais, melhoria na qualidade dos registros de ocorrências, além de outros benefícios como redução de falsas acusações contra policiais e aumento da transparência”, diz o texto.
Também são destacados ganhos na formação de novos agentes, com o uso das imagens capturadas como material instrutivo em academias de polícia.
“O principal objeto do documento é o uso das câmeras corporais pela PM porque nós reputamos que o uso da câmera, está comprovado, diminuiu a violência policial. Protege o bom policial, as imagens tem caráter instrutivo para os policiais que estão na academia, o uso das câmeras também se presta para a produção da provas”, explica Alberto Zacharias Toron, presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-SP.
O relatório conta também com a participação de diversas entidades da sociedade civil, incluindo Conectas, Instituto Sou da Paz, Geledés, Rede Liberdade, Instituto de Referência Negra Peregum e o Núcleo de Estudos da Violência.
Cortes no programa e aumento da letalidade
O relatório aponta um retrocesso na expansão do programa de câmeras corporais. Após assumir o governo estadual, Tarcísio de Freitas reduziu em 37% o orçamento destinado à iniciativa, o que inviabilizou a ampliação do uso do equipamento entre as forças policiais. O texto atribui à descontinuidade do programa parte do aumento nos índices de letalidade policial.
Entre janeiro e setembro de 2024, o estado registrou 580 mortes por intervenção policial, um crescimento de 55% em relação ao mesmo período de 2023, quando houve 374 óbitos. O número quase dobrou na comparação com 2022, quando foram contabilizadas 293 mortes no mesmo intervalo.
“Em São Paulo, o controle da letalidade policial tem oscilado entre avanços e retrocessos, com medidas muitas vezes descontinuadas ou enfraquecidas ao longo do tempo, o que reflete a falta de uma política de Estado consistente”, diz o relatório.
Outros fatores apontados
Além do corte no orçamento das câmeras corporais, o relatório cita outras mudanças na estrutura da segurança pública paulista que podem ter impactado os índices de violência policial. Entre elas estão:
- Reestruturação na Polícia Militar, com a troca de 34 coronéis em cargos de comando. O texto sugere que as mudanças contribuíram para instabilidades internas e perda de continuidade em programas estratégicos.
- Fragilização da Ouvidoria das polícias, órgão que desempenha papel central no monitoramento e acompanhamento de denúncias de abusos. De acordo com o relatório, houve redução da autonomia do órgão e dificuldades no acesso a informações, como boletins de ocorrência.
- Desmonte de programas de apoio psicológico para policiais, o que, segundo o texto, pode ter impactos no bem-estar emocional dos agentes e na condução de suas atividades em campo.
“A experiência paulista ao longo das últimas décadas demonstra uma série de medidas que dão certo na redução da letalidade policial. Os retrocessos ocorreram porque várias dessas medidas não tiveram sequência ou foram esvaziadas ao longo do tempo. A experiência de avanços e retrocessos indica que o controle da polícia não se converteu em política de Estado”, analisa Theo Dias, vice-presidente da Comissão.
Casos recentes de violência policial
Os episódios de violência policial registrados em São Paulo nos últimos meses mostram os problemas enfrentados na área da segurança pública. Entre os casos mencionados estão:
- O assassinato de um homem por um policial militar de folga, que o atingiu com 11 tiros pelas costas.
- A agressão a uma idosa por agentes da PM, que resultou no afastamento dos envolvidos.
- A morte do estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, baleado dentro de um hotel na Vila Mariana, em São Paulo.
- O falecimento de uma criança de 4 anos, atingida por um disparo durante uma operação policial em Santos.
Esses casos, muitos dos quais registrados por câmeras corporais ou por testemunhas, chamaram atenção para o uso da força por agentes da segurança pública e reforçaram as discussões sobre treinamento e supervisão.
Recomendações da OAB-SP
O relatório da OAB-SP apresenta uma série de recomendações para aprimorar a gestão da segurança pública em São Paulo. As principais propostas incluem:
- Ampliar o uso de câmeras corporais, considerando os resultados positivos na redução da letalidade e na transparência das operações.
- Revisar a política de uso da força, com a adoção de protocolos alinhados a padrões internacionais de direitos humanos.
- Fortalecer a Ouvidoria das Polícias, garantindo sua independência e acesso irrestrito às informações necessárias para investigações.
- Criar mecanismos de apoio às vítimas de violência policial, com programas que ofereçam assistência jurídica, psicológica e social.
- Reestruturar a formação dos policiais, com enfoque em programas de redução da letalidade e no aprimoramento das relações interpessoais no cumprimento do dever.
“A polícia só tem a lucrar com um sistema eficiente de controle. O bom relacionamento com a sociedade resulta em mais prevenção, melhor investigação do crime, mais segurança física, melhor saúde mental e maior satisfação profissional dos policiais”, afirma Dias.
A formação de policiais foi um dos pontos centrais discutidos no relatório. Segundo Toron, a capacitação dos agentes deve incluir conteúdos voltados à preservação da vida e à mediação de conflitos. Ele destacou que o uso de câmeras corporais também pode contribuir como ferramenta pedagógica nas academias, permitindo que futuros policiais aprendam com situações reais capturadas em campo.
A necessidade de programas anti-letalidade, voltados tanto para praças quanto para oficiais, é ressaltada como uma etapa fundamental para a construção de uma política de segurança mais eficiente e menos violenta.
Criminalistas também criticam postura do Estado
O advogado criminalista Welington Arruda analisou as implicações da redução no orçamento para o programa de câmeras corporais e as mudanças estruturais no controle interno das polícias. Para ele, essas ações refletem uma política voltada para o enfraquecimento dos mecanismos de fiscalização.
“Reduzir o orçamento de um programa que provou ser eficiente é uma decisão que levanta muitas questões. Não é apenas uma questão financeira, mas uma sinalização de que o controle das polícias não é uma prioridade. Na prática, isso resulta em um enfraquecimento silencioso da iniciativa, comprometendo sua eficiência e os benefícios que ela traz tanto para a sociedade quanto para os próprios agentes”, afirma.
Arruda destaca que a falta de controle interno das polícias é um problema estrutural que se agrava com essas medidas. “As mudanças feitas no sistema de controle interno da Polícia Militar, especialmente em São Paulo, como a diluição de responsabilidades da Corregedoria, representam um retrocesso. É como se houvesse uma autorização implícita para a liberdade total nas ações policiais, o que inevitavelmente aumenta a letalidade e os abusos de poder”, analisa.
Ele também reforça a importância das câmeras corporais como uma ferramenta essencial para a segurança pública e a justiça. “Sem transparência, o monopólio do uso da força pelo Estado pode facilmente ser distorcido. As câmeras corporais são um instrumento crucial para trazer essa transparência, proteger os cidadãos e assegurar que os agentes atuem dentro dos limites da legalidade”, conclui.
Lenio Streck, professor de Direito Constitucional e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados, reforça o impacto do relatório da OAB sobre o tema. “Já não se trata de um direito da cidadania – este, de ter uma polícia vigiada -, mas de um dever fundamental do Estado. E sendo um dever de proteção, é exigível. Já há decisão judicial dizendo isso. O relatório da OAB coloca o governo de SP contra as cordas. O relatório joga luz sobre esse problema – que hoje se apresenta como uma tragédia cotidiana. Trata-se de se defender contra ‘a caça aos pobres’”, avalia.
Decisão do STF
O relatório divulgado na quinta-feira (19) está alinhado com a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, que determinou a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais por policiais durante operações no estado de São Paulo. Na decisão, emitida no último dia 8, Barroso estipulou que o equipamento deve ser priorizado nos batalhões com maior índice de letalidade e destacou a necessidade de gravação contínua.
Nesta semana, o governo de São Paulo, liderado por Tarcísio de Freitas, solicitou ao STF a suspensão da liminar, justificando que a Secretaria de Segurança Pública não dispõe de câmeras suficientes para atender à determinação. Segundo o governo, o estado possui cerca de 80 mil policiais militares em seu efetivo, mas apenas 10.125 dispositivos estão disponíveis, o que comprometeria a implementação universal da medida.
O governo também argumentou que a obrigatoriedade poderia dificultar ações policiais rápidas e emergenciais. Após receber o pedido, o STF concedeu um prazo de cinco dias para que o Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo apresentem suas manifestações sobre a questão.