O caso Adele e Toninho Geraes: uma vitória para a proteção da música brasileira?
Luciano Teixeira – São Paulo
A Justiça do Rio de Janeiro decidiu que a música “Million Years Ago”, da cantora britânica Adele, deve ser retirada das plataformas digitais no Brasil e no exterior. A decisão foi motivada por uma acusação de plágio apresentada pelo compositor brasileiro Toninho Geraes, autor da canção “Mulheres”, famosa na voz de Martinho da Vila. Segundo a denúncia, a faixa de Adele possui “notas idênticas” em trechos cruciais, como a introdução, refrão e final.
O advogado de Toninho, Fredimio Biasotto Trotta, afirmou que o caso representa um marco para o reconhecimento dos direitos autorais de compositores brasileiros. “Essa decisão abre um precedente importante para que a música brasileira seja respeitada mundialmente”, declarou Trotta.
Semelhanças e impacto internacional
De acordo com o processo, foram identificados 88 compassos idênticos, correspondendo a aproximadamente 87% da música. As semelhanças entre as melodias já haviam sido notadas desde o lançamento do álbum 25, em 2015, mas o embate jurídico se intensificou nos últimos anos.
Para Luciana Minada, sócia do Kasznar Leonardos e especialista em direitos autorais, como a lei não estabelece critérios objetivos, a análise da configuração de plágio se torna casuística e depende das provas apresentadas (ou produzidas) no processo.
“No caso de Toninho Geraes e Adele, o juiz levou em consideração os seguintes fatores principais: a consonância melódica entre as obras “Mulheres” e “Million Years Ago”, demonstrada pelo autor por meio da sobreposição dos respectivos áudios; a simetria verificada entre as melodias das obras, demonstrada por meio da sobreposição de waveforms [representação gráfica que mostra a variação de amplitude de um sinal ao longo do tempo]; a opinião técnica de especialistas consultados pelo autor e a própria impressão do juiz ao ouvir ambas as músicas, tendo constatado a existência de ‘relevantes semelhanças melódicas'”, avalia a especialista.
O caso é emblemático por vários motivos:
Reconhecimento global da música brasileira: A decisão da Justiça do Rio de Janeiro destaca a relevância da produção musical nacional e reforça a necessidade de valorização dos compositores brasileiros em nível internacional.
Tratados internacionais e alcance global: A decisão judicial tem alcance global, graças a tratados internacionais como a Convenção de Berna, que asseguram a proteção dos direitos autorais além das fronteiras nacionais. Caso as plataformas de streaming descumpram a ordem e mantenham a música disponível, poderão ser aplicadas multas diárias de R$ 50 mil.
Precedente jurídico: A decisão pode influenciar futuros julgamentos envolvendo plágio e apropriação indevida de obras, estabelecendo parâmetros mais rigorosos para a proteção de direitos autorais no Brasil e em outros países.
Impacto na era digital: A facilidade de acesso e compartilhamento de músicas na internet torna casos como esse mais frequentes. O episódio ressalta a necessidade de mecanismos eficazes para identificar e coibir violações, preservando a originalidade e garantindo que os criadores sejam devidamente reconhecidos e remunerados.
A ação judicial inclui ainda pedidos de indenização por danos morais e materiais, que podem ultrapassar R$ 1 milhão. Além de Adele, o produtor Greg Kurstin e as gravadoras Sony e Universal também foram citados no processo e deverão apresentar suas defesas.
Uma disputa com grandes nomes do mercado musical global, além de contar com fatores de pressão como a exposição da mídia e até mesmo dos fãs calorosos, pode soar como um confronto entre Davi e Golias, especialmente se envolver artistas brasileiros com pouca projeção internacional.
“Os principais desafios dizem respeito aos custos inerentes a qualquer disputa judicial, à comprovação da ocorrência do plágio e aos documentos apresentados – casos bem fundamentados e com provas contundentes podem fazer com que grandes nomes internacionais da música sejam devidamente responsabilizados pela violação de direitos de terceiros”, explica Minada.
Compare as músicas:
Legislação e proteção no Brasil
No Brasil, a Lei 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais) estabelece os parâmetros legais para proteção das obras artísticas, garantindo que os direitos autorais sejam irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis. Entre os principais direitos assegurados estão:
- Direito de reprodução e distribuição;
- Proibição do uso não autorizado (como samples e reproduções parciais);
- Indenização por danos materiais e morais.
Os danos materiais são calculados com base na exploração indevida da obra, enquanto os danos morais não dependem de comprovação direta, sendo fixados conforme a gravidade da infração. Além disso, o Código Penal tipifica a violação de direitos autorais como crime, com pena de até 4 anos de reclusão.
Embora o registro da obra não seja obrigatório para sua proteção, ele é recomendado como prova de autoria. No Brasil, o registro pode ser realizado na Biblioteca Nacional, no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) ou em outras entidades autorizadas. Além disso, muitos artistas têm registrado seus nomes artísticos como marca para evitar o uso indevido.
Outros Casos Notórios de Plágio
O caso de Adele não é um episódio isolado na indústria musical. Disputas sobre direitos autorais são recorrentes e evidenciam a complexidade envolvida na proteção de obras originais, especialmente em um ambiente digital globalizado. Confira alguns dos casos mais emblemáticos que marcaram a história da música e influenciaram a jurisprudência sobre plágio.
Jorge Ben Jor x Rod Stewart
Em 1978, o cantor britânico Rod Stewart lançou a faixa “Da Ya Think I’m Sexy?”, que rapidamente se tornou um sucesso mundial. No entanto, as similaridades com “Taj Mahal”, lançada anos antes por Jorge Ben Jor, não passaram despercebidas. A introdução e os arranjos da canção de Rod Stewart apresentavam trechos muito próximos da obra brasileira. O caso foi solucionado fora dos tribunais: Stewart reconheceu a semelhança e chegou a um acordo com Jorge Ben Jor, destinando os royalties da música para a UNICEF. O episódio trouxe à tona a relevância da música brasileira no cenário global e se tornou um exemplo de como acordos podem evitar longas batalhas judiciais.
Blurred Lines x Marvin Gaye
Um dos casos mais polêmicos dos últimos anos envolveu a faixa “Blurred Lines”, lançada em 2013 por Robin Thicke e Pharrell Williams. A família de Marvin Gaye alegou que a música plagiava “Got to Give It Up”, de 1977, tanto em estrutura quanto em ritmo. A disputa foi acirrada e gerou intenso debate sobre as fronteiras entre inspiração e cópia na música. Em 2015, um tribunal americano condenou Thicke e Pharrell a pagar aproximadamente US$ 5 milhões em indenizações aos herdeiros de Marvin Gaye. O veredito foi controverso, pois músicos e especialistas argumentaram que a decisão poderia limitar a criatividade na indústria, estabelecendo um precedente rigoroso sobre elementos sonoros e estilos musicais.
Led Zeppelin x Spirit
Uma das maiores bandas de rock de todos os tempos, o Led Zeppelin, enfrentou acusações de plágio em relação à icônica “Stairway to Heaven”, lançada em 1971. A banda Spirit alegou que a introdução da música era semelhante à faixa instrumental “Taurus”, de 1968. O caso se arrastou por anos, com audiências minuciosas envolvendo peritos musicais e análises técnicas das partituras. Em 2020, após uma longa batalha, a justiça americana decidiu a favor do Led Zeppelin, afirmando que as semelhanças eram insuficientes para caracterizar plágio. A decisão foi considerada uma vitória para a liberdade criativa na música, mas também destacou a linha tênue entre inspiração e cópia em obras artísticas.
Proteção da MPB
Toninho Geraes nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, e tem mais de 30 anos dedicados à música. Sua carreira decolou nos anos 1990, quando suas composições começaram a ser gravadas por nomes de peso do samba e do pagode. Além de “Mulheres”, lançada em 1995 e eternizada na voz de Martinho da Vila, Toninho também é autor de sucessos como “Seu Balancê”, gravado por Zeca Pagodinho, e “A luz de Tieta”. Artistas como Beth Carvalho, Diogo Nogueira e Clara Nunes também interpretaram suas obras, consolidando sua importância na história da música nacional.
Toninho Geraes destacou a importância de “Mulheres” para sua carreira e para a música brasileira. Lançada em 1995, a canção consolidou sua presença no cenário nacional e internacional, sendo considerada um marco da MPB.
A decisão reacende debates sobre a proteção dos direitos autorais em um cenário globalizado e digital. Para Fredimio Biasotto Trotta, a vitória parcial simboliza uma resposta firme contra práticas que desrespeitam a originalidade da produção musical. “A música brasileira é um patrimônio cultural que precisa ser valorizado e protegido”, afirmou.
A sentença final sobre o caso ainda não foi anunciada pela justiça. Enquanto o processo segue em andamento, a retirada temporária de “Million Years Ago” das plataformas reforça a necessidade de mecanismos mais eficazes para garantir o respeito às obras originais.
Segundo os especialistas, a decisão pode impactar positivamente os compositores brasileiros no cenário internacional, mostrando que os artistas nacionais podem ter êxito ao adotar uma postura proativa na defesa de seus direitos. “Mesmo intérpretes de grande renome, como a Adele, poderão ser responsabilizados por casos de violação de direitos autorais. Além disso, a própria repercussão internacional da decisão, já noticiada por diversos veículos de comunicação estrangeiros, ‘passa um recado’ ao mercado quanto à atenção e ao empenho de artistas brasileiros na proteção de seus direitos”, conclui Luciana Minada.