Endowments e o impacto no Brasil: um novo olhar para fundos patrimoniais
Priscila Pasqualin*
Os endowments são muito criticados porque têm um grande volume de capital, que fica investido no mercado financeiro, destinando apenas o rendimento à causa de interesse público – uma universidade, um hospital, um museu, o meio ambiente e tantas outras. Algo que não é muito falado, porém, é que a onda dos investimentos responsáveis foi iniciada, anos atrás, pelos endowments – ou fundos patrimoniais – e pelas fundações estrangeiras, porque são investidores diferenciados – eles têm propósito de interesse público e não apenas o propósito do lucro que os investidores privados têm.
Na pandemia vimos endowments americanos emblemáticos, como a Fundação Ford, fazendo grandes investimentos de impacto social para usar causar impacto social com retorno financeiro também com o principal e não apenas com os rendimentos. Atualmente na Europa, as fundações e os endowments estão se especializando nos investimentos de impacto com seus recursos, criando um comitê de impacto que caminha pari-passu com o Comitê de Investimentos.
Com isso, as fundações e endowments realizam sua finalidade com recursos filantrópicos e com recursos de investimento de impacto, ainda que o retorno financeiro seja, por vezes, menor do que os chamados investimentos tradicionais. Aqui no Brasil a indústria dos fundos patrimoniais está apenas começando e pouco vemos os Comitês de Investimento discutirem qual o impacto da política de investimentos do fundo patrimonial – seja pelo viés do risco de longo prazo, seja pelo viés do impacto positivo.
As políticas de investimento seguem um padrão bem conservador e com alta liquidez, como se vê no Anuário de Desempenho dos Fundos Patrimoniais divulgado anualmente pelo IDIS, na contramão da política de investimentos dos endowments no exterior. Para se ter uma ideia, digamos que um fundo patrimonial tem R$ 100 milhões em ativos. Esse fundo irá gerar cerca de R$ 4 milhões de rendimentos para a iniciativa apoiada.
Mas o que é feito com os R$ 100 milhões? Muitas vezes o impacto negativo dos investimentos com esse recurso excede em muito o impacto positivo da doação. O alinhamento entre a finalidade maior do fundo patrimonial com os investimentos que realiza é possível amplia o potencial de impacto de forma exponencial e necessária para o planeta. É o capital servindo ao propósito maior do fundo patrimonial. É a magia do duplo impacto!
Parte das justificativas para esse comportamento dos Comitês de Investimento se baseia no risco das interpretações da Receita Federal sobre desvio de finalidade e conflito de interesses. Mas será que isso realmente é um risco? Se isso era tido como um risco, acabamos de ter um avanço legislativo significativo que coloca uma pá de cal nesse ponto.
Acaba de ser aprovado no Senado Federal o PL 2440/2023, que traz a isenção do Imposto de Renda e da Cofins sobre aplicações financeiras e reconhece, expressamente, que os fundos patrimoniais podem investir em empresas e no exterior, como parte de sua política de investimentos.
A aprovação deste PL, junto com a emenda nº 1622, apresentada pelo Senador Davi Alcolumbre, que reconhece a neutralidade tributária das Organizações Gestoras de Fundo Patrimonial, vão representar um avanço significativo para os endowments, eliminando qualquer insegurança jurídica sobre sua a tributação. Esse projeto de lei é fruto do esforço de advocacy da Coalizão pelos Fundos Filantrópicos, liderada pelo IDIS, que teve seu impacto reforçado pela Aliança pelo Fortalecimento das Organizações da Sociedade Civil, iniciada a partir da provocação do Instituto Beja, que, junto com o PLKC Advogados, fomentam o trabalho colaborativo.
A Aliança é formada por relevantes instituições como o GIFE, Abong, ABCR, ICE, APF, e cinco escritórios de advocacia especializados. Ao invés de pensarmos sobre os possíveis conflitos de interesse entre o investimento do principal e o dispêndio de recursos dos rendimentos dos fundos patrimoniais, devemos pensar na potência da convergência de interesses.
Ao invés de pensar no possível desvio de finalidade, devemos pensar na potência do alinhamento de propósito. Temos visto alguns fundos patrimoniais buscando ampliar seu impacto, através da criação de fundos de propósito específico. Como exemplo temos o Fundo USP Diversa, que integra o fundo patrimonial da USP e, quando atingir 50 milhões de patrimônio, poderá contar com política de investimentos própria.
Outro exemplo ousado é a GAIA Legado, fundo patrimonial que atende à Lei 13.800/19, criada a partir do aporte de recursos e da participação societária da empresa de investimento de impacto feita pelo seu fundador, João Paulo Pacífico. Especialista em investimento de impacto, que ficou conhecido por ter lançado o primeiro CRA do MST, alinha o investimento do fundo patrimonial com o impacto positivo que quer gerar no Planeta.
A GAIA Legado acabou de lançar mais um fundo de propósito específico, o Fundo Joaquim Rosa Cambraia, a partir da doação de Gislaine Rosa, de 1.500 hectares de terras produtivas, para transformá-la numa fazenda modelo, baseada na compaixão e na colaboração, onde famílias de pequenos produtores rurais poderão morar e explorar a terra de forma agroecológica e sem especulação imobiliária.
Legado, sob o ponto de vista jurídico, é o conjunto de bens deixados para uma pessoa que não é herdeira legítima. Pesquisando a etimologia da palavra, “legado” tem origem no latim medieval legatia, que significa “grupo de pessoas enviadas em uma missão”. Pensando no legado dos exemplos que relatei, é possível perceber que sua força é exponencial, capaz de transformar nosso mundo em um mundo melhor para todos.
E para aqueles que, como eu, são advogados, fica o desafio de se integrar à iniciativa inovadora, para entender toda sua dimensão e buscar a alternativa jurídica que melhor represente todos os interesses envolvidos, que não são contrários, são convergentes – a construção de um novo modelo de sociedade, menos desigual e mais sustentável.
*Priscila Pasqualin, sócia da área de filantropia e investimento social em PLKC Advogados.