É possível que o dólar perca sua hegemonia na economia global?

É possível que o dólar perca sua hegemonia na economia global?
O dólar ocupa uma posição dominante no comércio e nas finanças globais desde a Segunda Guerra Mundial, servindo como moeda de referência em transações internacionais e reserva de valor para bancos centrais/Pixabay
Publicado em 13/12/2024 às 11:41

O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos trouxe novamente ao centro das atenções o debate sobre a supremacia do dólar nas relações comerciais globais. Em uma declaração polêmica, o presidente sugeriu taxar em 100% os produtos de países do Brics — grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — caso o bloco avance na substituição do dólar como moeda padrão em transações comerciais. A fala provocou reações imediatas de líderes globais, como Vladimir Putin, que alertou para os potenciais efeitos reversos de uma postura coercitiva.

O dólar ocupa uma posição dominante no comércio e nas finanças globais desde a Segunda Guerra Mundial, servindo como moeda de referência em transações internacionais e reserva de valor para bancos centrais. Entretanto, mudanças no cenário econômico e político têm motivado esforços de alguns países para diversificar as moedas utilizadas no comércio exterior.

Paulo Borba Casella, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP e membro do Grupo de Estudos sobre o Brics (Gebrics), explica que a busca por alternativas ao dólar não é novidade. “A Rússia, desde a invasão da Ucrânia em 2022, foi excluída do sistema Swift e passou a usar sua própria moeda e de parceiros comerciais. Isso também ocorre com a China em algumas operações, e o Brasil já se mostrou favorável ao uso de outras moedas em mais de uma ocasião”, afirma.

Esse movimento reflete uma tendência de maior autonomia comercial entre os países do Brics, alinhada a estratégias nacionais de reduzir a dependência do dólar.

Menos dependência: uma análise sobre alternativas ao dólar

A ideia de reduzir a dependência do dólar como moeda predominante nas transações internacionais é um dos principais motores para que países ou blocos econômicos busquem novas formas de pagamento. Entretanto, essa substituição não necessariamente implicará em menos gastos nas operações de importação e exportação. Apesar da aparente lógica de economia, transações em dólar frequentemente apresentam custos mais baixos devido a regras de mercado estabelecidas.

De acordo com a Secretaria de Comércio Exterior (Secex), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), os custos das operações em dólar são reduzidos por razões como a ausência de múltiplas conversões e taxas bancárias mais competitivas.

“O objetivo principal não é a redução de custos das operações, mas a redução da dependência monetária em relação ao dólar e o aumento da capacidade de financiamento em moeda nacional”, afirma o economista Pedro Rossi, professor livre-docente do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e vice-presidente do Global Fund For a New Economy.

Rossi destaca a vulnerabilidade que os países enfrentam devido à supremacia do dólar. “Hoje, os países são muito suscetíveis às flutuações do dólar, à própria política monetária americana. Precisam carregar reservas na moeda americana, o que caracteriza uma assimetria monetária no sistema global. O objetivo de adotar um sistema de pagamento alternativo é reduzir essa assimetria”, analisa ele, autor do livro Brasil em Disputa – Uma nova história da economia brasileira (Editora Planeta).

Lentidão na consolidação de moedas alternativas

Mesmo com a importância estratégica de reduzir a dependência do dólar, o processo de consolidação de moedas alternativas tende a ser longo e complexo. Mesmo sucessos como o euro demonstram que, embora a criação de uma moeda seja viável, sua aceitação como meio de pagamento internacional ou regional apresenta desafios significativos.

“A adoção de uma moeda única é bem diferente da adoção de um sistema de pagamento específico, como uma câmara de compensação que processa créditos e débitos entre moedas nacionais. A moeda única, tal como o euro, é difícil de sustentar quando não há uma união fiscal entre os países”, explica Rossi.

Ele cita o exemplo europeu para ilustrar os desafios. “O caso da Europa mostra isso bem: há uma união monetária, mas não fiscal, e isso gera tensão entre os países. Os países não emitem suas próprias moedas e, por isso, não dispõem de mecanismos macroeconômicos, como a possibilidade de desvalorização cambial ou de financiamento em suas próprias moedas. Eles perdem autonomia macroeconômica. O mesmo vale para o Mercosul. Eu não vejo possibilidade de o bloco adotar uma moeda única, pois são países com suas especificidades”, afirma.

Apesar dessas dificuldades, Rossi reconhece que iniciativas como o comércio em moeda local, já implementadas entre Brasil e Argentina, podem ser promissoras. “São iniciativas que economizam dólar”, completa o economista.

Os desafios da supremacia do dólar

É importante lembrar que os Estados Unidos têm vantagens estruturais significativas para sustentar a hegemonia do dólar. Diferentemente de outros países, os EUA possuem um sistema próprio para emitir dólares, garantindo uma posição de predominância nos mercados globais.

Enquanto países e blocos buscam alternativas, a transição para um sistema menos dependente do dólar continuará enfrentando barreiras econômicas e políticas. Como apontado por Rossi, “a criação de alternativas não é apenas uma questão técnica, mas também de reorganização das relações de poder na economia global.”

A estratégia de Trump e as repercussões

As declarações de Trump foram interpretadas como parte de sua retórica política voltada ao eleitorado interno, mas especialistas apontam para os riscos de sua abordagem. Casella descreve o discurso como ultrapassado e contraproducente: “Ele está usando o estilo Trump de truculência para impor pela força o que poderia ser negociado. Essa ameaça pode ter um efeito reverso.”

O especialista também critica a ideia de pressionar outros países a usar o dólar sob ameaça de sanções. “Pressionar com ‘usem o dólar ou serão castigados’ é fora de propósito e arriscado, podendo gerar resultados contrários aos desejados pelos Estados Unidos. Essa postura pode estimular o avanço de acordos alternativos entre blocos como Mercosul e União Europeia, demonstrando que o mundo não depende exclusivamente do dólar.”

Brasil e o Brics: perspectivas e desafios

O Brasil tem adotado uma postura estratégica em relação ao Brics, promovendo maior autonomia nas relações comerciais. Em um discurso por videoconferência durante a Cúpula dos Brics, no fim de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfatizou a necessidade de avançar na criação de uma alternativa ao dólar para o comércio entre os países do bloco. Segundo ele, o tema é urgente e não deve ser postergado.

O presidente destacou que a implementação de meios de pagamento alternativos é fundamental para promover uma “ordem multipolar” no sistema financeiro internacional, alinhada aos objetivos do Brics.

“Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional”, afirmou Lula durante o evento.

Ele também ressaltou a importância de abordar o assunto com responsabilidade e planejamento. “Essa discussão precisa ser enfrentada com seriedade, cautela e solidez técnica, mas não pode ser mais adiada”, completou o presidente.

A ideia de uma moeda unificada para o bloco, embora frequentemente discutida, encontra barreiras técnicas, segundo especialistas em direito internacional e economistas. “Para implementar uma moeda unificada entre países do Brics, é necessário alinhar políticas monetárias e cambiais, o que exige uma convergência significativa que ainda não existe”, explica Casella.

A integração econômica do Brasil com os Estados Unidos também complica qualquer movimento radical contra o dólar. “Sobretaxar importações afeta não apenas os países exportadores, mas também a economia americana, com impactos negativos como inflação e desemprego”, diz o professor.

A busca por alternativas ao dólar reflete um desejo de reequilíbrio no sistema econômico global. Países do Brics têm experimentado o uso de moedas nacionais em acordos bilaterais, reduzindo custos de conversão e aumentando a previsibilidade nas transações. A China, por exemplo, tem expandido o uso do yuan em seus acordos comerciais, enquanto o Brasil explora possibilidades de diversificação.

Ainda assim, segundo os especialistas, o dólar mantém vantagens significativas, como estabilidade e ampla aceitação, que dificultam a substituição no curto prazo. O processo demanda tempo e coordenação entre os países envolvidos.

A postura dos Estados Unidos em relação ao dólar e sua reação às iniciativas do Brics serão decisivas para o futuro das relações econômicas globais. Se, por um lado, a supremacia do dólar oferece benefícios como uma moeda estável para transações internacionais, por outro, a dependência excessiva de uma única moeda torna o sistema vulnerável a choques externos e decisões unilaterais.

Para o Brasil, manter uma posição estratégica no Brics e explorar alternativas ao dólar pode fortalecer sua autonomia no comércio internacional. No entanto, o sucesso de iniciativas como a criação de uma moeda unificada dependerá de um esforço conjunto para alinhar políticas e superar desafios técnicos e políticos.

“Taxar importações de outros países não é apenas uma punição; também gera inflação e problemas econômicos internos. Medidas assim são insustentáveis e, no final, prejudicam todos os envolvidos”, conclui Casella.

Com informações do Jornal da USP e Agência Gov.br.

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