Decisão da justiça sobre iFood pode redefinir vínculos trabalhistas no país
Luciano Teixeira – São Paulo
A 14ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), em São Paulo, decidiu que o iFood deve reconhecer o vínculo empregatício de todos os seus entregadores e pagar uma indenização de R$ 10 milhões. A decisão, tomada por maioria (2×1), reverteu um julgamento anterior da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, que havia rejeitado o pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT).
O julgamento contou com votos divergentes. O relator do caso, desembargador Ricardo Nino Ballarini, declarou que os entregadores do iFood e da Rapiddo Agência de Serviço de Entrega Rápida, do mesmo grupo, possuem vínculo empregatício. Segundo o relator, a impossibilidade dos entregadores negociarem valores de frete e a ordem das entregas demonstra a ausência de autonomia, configurando subordinação típica de uma relação de emprego.
Ballarini determinou que o iFood registre os trabalhadores, sob pena de multa de R$ 5 mil por trabalhador encontrado em situação irregular, além de aplicar a indenização de R$ 10 milhões, que será destinada a entidades de interesse social.
O desembargador destacou que, ao contrário de plataformas como o Airbnb, onde o prestador negocia diretamente com o cliente, no iFood a relação é intermediada pela plataforma, que organiza e controla o processo de entrega. Essa configuração, segundo o magistrado, fortalece os argumentos em favor do vínculo empregatício.
O voto do relator foi acompanhado pelo desembargador Davi Furtado Meirelles. No entanto, o desembargador Fernando Álvaro Pinheiro divergiu, sustentando que a Justiça do Trabalho não seria competente para julgar o caso, citando precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF).
A ação foi movida pelo Ministério Público do Trabalho, que argumentou que o iFood utiliza uma estrutura de contratação que disfarça o vínculo empregatício. O órgão classificou o modelo como um “sistema de servidão digital”, no qual entregadores e motoristas são contratados como autônomos, mas submetidos a condições típicas de empregados.
O MPT já moveu outras ações similares contra empresas como Uber, 99 e Rappi, algumas das quais resultaram em decisões favoráveis ao reconhecimento de vínculos empregatícios.
Repercussão no setor de plataformas
Em nota, o iFood informou que irá recorrer da decisão, alegando que ela gera insegurança jurídica para o setor. Segundo a empresa, a determinação contraria decisões recentes, como as da 3ª Turma do TRT2, que negaram vínculo empregatício em casos envolvendo a plataforma 99 e motoristas parceiros.
“O posicionamento destoa de decisões recentes do próprio TRT2 e gera insegurança jurídica ao criar um modelo de vínculo por hora trabalhada que não tem previsão na legislação atual. Além disso, impõe obrigações específicas a uma única empresa, sem considerar a dinâmica flexível do trabalho por aplicativos”, declarou a empresa.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) também criticou o julgamento, destacando que o vínculo previsto na CLT não se aplica ao trabalho mediado por plataformas tecnológicas. “Decisões como essa prejudicam discussões mais amplas no Executivo e no Legislativo sobre a regulamentação do setor”, afirmou André Porto, diretor executivo da entidade.
O iFood destacou que, se mantida, a decisão pode comprometer a sustentabilidade do setor de delivery. A empresa afirma que suas operações movimentaram R$ 110,7 bilhões em 2023, representando 0,55% do PIB brasileiro, gerando mais de 900 mil empregos diretos e indiretos.
Segundo a nota, o modelo atual permite flexibilidade para entregadores, estabelecimentos e consumidores, enquanto mudanças impostas por decisões judiciais pontuais podem gerar distorções e afetar o equilíbrio do mercado.
Debates legislativos e futuros ajustes
A decisão reacendeu debates no Congresso Nacional e no Executivo sobre a necessidade de regulamentação do trabalho por plataformas digitais. Propostas discutidas incluem a criação de um marco regulatório que preserve as características flexíveis do modelo, mas com maior proteção social aos trabalhadores.
Especialistas apontam que o regime de vínculo empregatício tradicional pode não ser viável para plataformas digitais, dada a dinâmica flexível e autônoma dos serviços prestados.
“Em vias gerais, a atuação do prestador de serviços vinculados em plataformas não gera dever de exclusividade, habitualidade ou subordinação jurídica ou econômica, uma vez que não possui exclusividade – podendo prestar serviços para diversas outras plataformas ao mesmo tempo -, tampouco habitualidade ou subordinação econômica ou jurídica, na medida em que não há penalização efetiva pelo não atendimento de demandas, sem qualquer possibilidade de controle, instituindo discussão sobre o trabalho externo e a impossibilidade de fixação de jornada laboral”, analisa Sergio Pelcerman, sócio da área trabalhista de Almeida Prado & Hoffmann.
Para o advogado, a falta de uma legislação específica que regule a matéria no país impede a convergência de entendimentos. “Diante da atividade específica e a fim de garantir direitos e segurança aos referidos profissionais, deve-se pensar em estudos específicos para regular responsabilidades, obrigações e direitos, o que se tornaria viável somente com uma atuação entre o Poder Judiciário, Legislativo e em conjunto com os representantes das empresas para vincular uma atuação em que não onere as empresas e prestadores de serviços, que na grande maioria dos casos, busca a atuação em caráter autônomo e sem exclusividade com as plataformas”, diz.
No entanto, os especialistas reconhecem a importância de se estabelecer um equilíbrio que garanta direitos mínimos aos trabalhadores sem inviabilizar o modelo de negócios das empresas.
“A introdução das plataformas digitais como fonte de sustento trouxe oportunidades de trabalho para diversos trabalhadores. Não se pode ignorar o fato de que muitas pessoas ou trabalham exclusivamente por meio do uso dessas ferramentas ou as têm como meio de obtenção de renda extra. Contudo, o que de um lado funciona como meio alternativo de renda, também gera preocupações pelos órgãos públicos, já que estes trabalhadores, no final das contas, vivem à margem do sistema social”, afirma Felipe Mazza, coordenador da área trabalhista do Efcan Advogados.
O problema, segundo ele, é que essas pessoas não possuem nenhuma proteção do ponto de vista do seguro social e podem trabalhar sem limite de horário, o que pode elevar o número de acidentes e doenças relacionadas ao desempenho do trabalho. “A plataforma obtém o lucro por meio da exploração do trabalho alheio, o que eleva o interesse do MPT na garantia da proteção desses trabalhadores”, conclui.
O impacto dessa decisão no mercado é grande e, se mantida, poderá mudar completamente a forma de trabalho das empresas do setor. “É importante destacar que não foi uma decisão unânime dos desembargadores que participaram do julgamento e mostra que é um tema que precisa de uma reanálise, especialmente ao se considerar a abrangência e possíveis reflexos de uma decisão dessa natureza”, avalia Bruno Minoru Okajima, especialista em direito do trabalho do escritório Autuori Burmann Sociedade de Advogados.
O caso seguirá para recurso e o desfecho pode influenciar o futuro do trabalho por aplicativos no Brasil. Em instâncias superiores, existe a possibilidade de que o entendimento da relação entre plataformas digitais e seus entregadores seja revisto, principalmente considerando a argumentação de que essas empresas defendem a autonomia de seus trabalhadores e a flexibilidade de horário.
“Apesar de a decisão sugerir uma possível tendência nos julgamentos envolvendo trabalhadores e plataformas, é importante destacar que o mesmo contraria o posicionamento até então predominante no STF e demonstra que este tribunal regional ainda não adotou uma posição unânime. Decisões como essa geram um ambiente de insegurança jurídica, o qual deverá ser resolvido com o julgamento do tema, sob a relatoria do ministro Edson Fachin”, afirma Taunai Moreira, sócio do Bruno Boris Advogados.
A própria definição de vínculo empregatício será um ponto crucial, uma vez que há divergências sobre o grau de subordinação necessário para caracterizar essa relação no contexto das plataformas digitais.
“Se o recurso do iFood for aceito, a decisão pode ser revertida, mas isso não significa que o assunto estará encerrado. A questão provavelmente continuará sendo analisada por tribunais superiores, o que pode levar a um entendimento definitivo no futuro. Além disso, a crescente pressão social e as demandas por melhores condições de trabalho para os entregadores podem acelerar mudanças legislativas que busquem regulamentar de forma mais clara o trabalho nas plataformas digitais, independentemente da decisão nas cortes trabalhistas”, avalia Gabriella Peixoto, advogada especializada em direito do trabalho do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados.
Enquanto isso, a decisão do TRT2 será acompanhada de perto por empresas, trabalhadores e legisladores, dada sua relevância para o setor e para o mercado de trabalho em transformação.