Ainda existe pessoalidade na advocacia corporativa?

Ainda existe pessoalidade na advocacia corporativa?
Pessoalidade ainda é relevante? Ainda existe? Os “tempos modernos” a contemplam?/Pixabay
Publicado em 10/12/2024 às 12:10

Leonardo Barém Leite*

Temas como tecnologia, “legal operations”, sistemas e softwares de gestão e jurídicos, inteligência artificial, redução de custos, ganhos de eficiência, e vários outros são importantíssimos, e tem ocupado grande parte de nosso tempo, da mídia especializada, de cursos e de eventos jurídico-corporativos, de feiras e de congressos, e estão “na mesa” de praticamente toda a advocacia brasileira (e mundial) – além de demandar muitos e pesados investimentos e ajustes na “cultura” de todas as organizações. 

Os aspectos, impactos, avanços e cuidados, consequências e riscos relacionados a todo esse contexto são muitos, e há mesmo muito a avaliar e a debater, mas um dos pontos que pouco se comenta é o “lugar” da pessoalidade na advocacia (especialmente corporativa); nesse contexto. 

Pessoalidade ainda é relevante? Ainda existe? Os “tempos modernos” a contemplam? Contratações e atuações exclusivamente “on-line”, que conectam pessoas que “nunca se encontraram”, ainda permitem que esses agentes de fato se conheçam e construam relações de confiança? E o uso de “robôs” altera essas questões?

Como a questão nos ocupa (e preocupa), pretendemos abordar algumas poucas (mas relevantes) questões neste breve artigo, procurando alertar (e convidar) nossa classe e categoria profissional, e também as organizações, os gestores, os investidores e a comunidade corporativa em geral, para que juntos consigamos reconhecer a sua importância, e avaliar seus impactos, a necessidade de cuidados especiais, os pontos e contrapontos, os riscos e as ferramentas de controle atuais – e, eventualmente, propormos ajustes e “correções”.

A constante e necessária busca corporativa pela eficiência (inclusive financeira e tecnológica) afeta bastante a advocacia, e em diversos aspectos, a ponto de ser importante que reflitamos sobre a possibilidade de ainda podermos considerar a pessoalidade nesse contexto.

Como se sabe, um dos principais pilares da advocacia ao longo dos anos, ao lado do saber jurídico é o binômino confiança e pessoalidade. E, na atualidade, estamos todos cuidando desse tema com a devida atenção?

Sustentamos que o relacionamento entre advogado e cliente, iniciado com a contratação dos serviços jurídicos é baseado em livre escolha, conhecimento do profissional, confiança, liberdade para a franqueza e a livre informação completa dos temas (reforçado, por exemplo, pelo sigilo da relação e todos contatos e informações), a reputação do profissional e o seu efetivo conhecimento etc. 

Essa construção de confiança, de parceria (que só existe se for dos dois lados), e de relacionamento demanda, certamente: tempo, constância e pessoalidade. E talvez já não seja tão comum encontrarmos esses pilares na advocacia corporativa atual.

Questionamos, por exemplo, se no tocante à escolha de profissionais pelas organizações a pessoalidade ainda é o fator básico e principal para as contratações, e se no caso das contratações para apoiar gestores jurídicos internos, ainda são eles (advogados internos) quem os escolhe.

Sustentamos, ainda, que nesse aspecto a pessoalidade abrace, inclusive, o tema das prerrogativas da advocacia, uma vez que existem justamente em benefício do cliente, ao conferir alguns direitos ao profissional que lhe atende.

Com o galopante uso da tecnologia, e da própria inteligência artificial, na advocacia, e também pelo judiciário, por autoridades em geral (em relacionamentos e em processos administrativos – por exemplo), ainda existe relacionamento pessoal? Com “audiências e reuniões” puramente digitais, ainda há pessoalidade? E, se grande parte das tarefas e dos atos agora é “tecnológica”, ainda existem prerrogativas da advocacia como antes?

O tema (da pessoalidade) é extremamente importante, tradicional e conhecido por toda a advocacia, mas com o decorrer do tempo, e com as diversas alterações que tem ocorrido na vida cotidiana, na sociedade em geral, na própria advocacia, nas empresas, e os consequentes impactos no relacionamento cliente-advogado, merece algumas reflexões importantes, especialmente no caso da advocacia corporativa (que envolve o atendimento jurídico às organizações).

Há algum tempo se contempla, por exemplo, mensagens automáticas, ou respondidas eletrônica e automaticamente, ou respondidas por não advogados, nas empresas e nos escritórios, com o crescente uso da festejada tecnologia, que promete rapidez e redução de custos, 

Será que ainda podemos realmente considerar os relacionamentos atuais de cliente e advogado como pessoais? E as formas e os procedimentos de escolha e de contratação da advocacia ainda contempla de fato pessoalidade? E a atuação de equipes internas e externas, que incluem não advogados, e também pessoas que nem se conhecem, ainda integra a categoria de relacionamento pessoal?

Como os aspectos que nos preocupam nesse contexto são muitos, destacamos apenas alguns deles, no intuito de propor ao público leitor que reflita sobre esses e outros pontos do relacionamento em tela, para que, inclusive, acompanhemos os seus desenvolvimentos – e eventualmente proponhamos algum ajuste (em algum momento).

Há poucas décadas a maioria das organizações pouco se utilizava da advocacia de forma regular e constante, o que gerava também um pequeno número de advogados internos (que com o tempo foram sendo treinados e preparados para essa função, assumindo, em muitos casos, funções executivas jurídicas). E quando equipe havia, era necessariamente pequena, em que todos se conheciam, efetivamente conviviam (presencial/pessoalmente) e contemplava apenas advogados.

O cenário atual é bem diferente, com vários ganhos que são inegáveis, mas será que só houve ganhos e avanços? O que se perdeu? 

Esses profissionais “internos”, de início, costumavam ocupar-se “apenas” de funções e de temas exclusiva/especificamente jurídicos, mas com o tempo e em diversos casos assumiram um contexto mais amplo, incluindo, também, por exemplo, questões ligadas a relações institucionais e governamentais, governança corporativa, “compliance”, direito digital e proteção de dados (por vezes sendo indicados como DPOs), e tantas outras áreas como recursos humanos, “fiscal”, segurança, comercial etc.

A ampliação de temas e de escopo, e a chegada de profissionais não jurídicos às equipes, abriu espaços, e gerou avanços, mas quem está observando mais aspectos?

Esse crescimento de “áreas e de temas” a cargo da advocacia (nas organizações) tem várias questões e consequências a observar, tanto em aspectos positivos como desafiadores, e na maioria dos casos o “assunto” jurídico tornou-se uma “unidade de negócios” cada vez maior – e consequentemente demandante de mais pessoas e de mais recursos em geral (até por englobar mais temas); a ponto de algumas organizações passarem a alegar que a área se tornou “cara”, esquecendo-se de que vários outros temas foram incluídos. E em muitos casos, a regionalização também colabora com a ampliação do escopo, ao considerar não apenas o Brasil, mas diversas outras áreas do continente.

O aumento do escopo da “área jurídica” em geral não tem sido acompanhado de uma adequada consciência da sensibilidade, do valor estratégico, e da importância dos temas, inclusive no tocante à elaboração dos “orçamentos” – mesmo com o importante apoio dos indicadores que hoje estão disponíveis e conseguem apontar os benefícios e os ganhos conseguidos pela equipe jurídica (interna e externa).

Em momentos de “cortes de orçamento”, é frequente que a área mais afetada seja justamente a jurídica, sem que se considere as consequências práticas, estratégicas e econômicas de cortes nem sempre razoáveis.

Uma das maneiras de se tentar reduzir custos é alocar muitas tarefas à tecnologia, e tantas outras a não advogados, em movimentos que são bastante complexos e merecem muita atenção, por exemplo no tocante a qualidade, à responsabilidade, à pessoalidade, e à própria construção (ou não) de relacionamentos.

De outro lado, em muitos casos, tem sido cometido um grande equívoco, tanto conceitual quanto estratégico, que tem alocado a escolha dos advogados “externos” não mais aos profissionais da área jurídica, mas a setores como suprimentos e compras, que nem sequer conhecer a advocacia ou seus profissionais.

Logicamente, não se deve generalizar, mas a experiência tem mostrado que essa terceirização da escolha, não tem sido boa ideia, pois são muitas as áreas demandantes, e que definem as contratações, que não conseguem nem mesmo solicitar corretamente ou parametrizar aspectos a serem considerados, gerando um processo de “compra geral de insumos”.

Processos de escolha e de contratação que são oriundos de outras áreas, geridos por não advogados, e por vezes relegados a softwares/sistemas, em muitos casos “nascem errados” e nem sempre se consegue consertar depois.

Em grande medida o contexto começou a ser especialmente afetado no Brasil com a chegada da chamada advocacia de massa, que demandou um incremento do uso da tecnologia, do uso de padrões, e a redução da atividade de advogados e até mesmo de pessoas em geral (pois muitas tarefas passaram a ocorrer via sistemas).

Na mesma linha, tem sido crescente a clara “escolha” de profissionais “por preço”, buscando sempre a “opção” mais barata, frequentemente em detrimento de diversos outros aspectos extremamente importantes, e na maioria desses casos existe (em verdade) não uma seleção, mas um “leilão reverso”.

Por mais que seja natural e correto que sempre busquemos a melhor relação “custo x benefício”, e o universo corporativo (em especial) precise mesmo buscar eficiência em todos os aspectos e reduzir custos, nem sempre se vê (na prática) a preocupação efetiva com os dois lados da equação. 

Nem sempre se considera que é frequente que “diferenças” de orçamentos de honorários decorram de premissas diferentes, de disparidades de conhecimento e de experiência, da especialização, da atenção efetiva a cada caso/tema, da senioridade envolvida, do tempo alocado, dos investimentos em formação e em atualização de profissionais, dos crescentes custos com tecnologia etc. E até mesmo da dificuldade de se estimar volume e detalhamento de trabalho antes mesmo de se começar a atuar em cada caso.

Esse tema preocupa a advocacia e deveria preocupar muito as organizações, pois é frequente que se comente que escolhas equivocadas derivam de processos de contratação malconduzidos. E constantemente ouvimos de colegas “internos” que já não tem autonomia, e por vezes nem mesmo ingerência nas contratações jurídicas. Sem contar a crescente (e preocupante) perda de senioridade e de posição hierárquica no organograma das organizações.

Se nas empresas a advocacia tem perdido força, e a realidade atual contempla diversos pontos de preocupação (como alguns aqui mencionados), a ponto de em muitos casos nem mesmo serem advogados a definir parcerias, que consequências podem advir dessa situação?

Esses processos de seleção (bastante distorcidos) ainda contemplam e permitem pessoalidade? E após a contratação, a interação entre sistemas, e cada vez mais entre não advogados (“dos dois lados”), contempla pessoalidade?

A terceirização de tarefas jurídicas é natural e positiva, mas em muitos casos parece estar sendo esquecida não apenas a pessoalidade, a confiança, e o relacionamento, como também o fato de que somente se terceiriza tarefas e não responsabilidades, que continuam sendo (inclusive pela escolha) dos advogados internos. Esse fato é muito preocupante.

Para “piorar” temos visto diversos casos em que nem mesmo contato entre empresa – escritório existe, pois o “processo” todo é terceirizado a softwares/sistemas que fazem apenas o leilão reverso “on-line”, “escolhendo” o escritório que aceitar o menor preço no leilão – de forma totalmente eletrônica.

E, como já mencionado, após a contratação é comum que ao longo dos trabalhos, advogados nem mais se encontrem ou sequer conversem, em função das chamadas “eficiências” e novas tecnologias.

Mas a questão não se resume às empresas (clientes), pois se há algumas décadas a realidade brasileira no que se refere à advocacia corporativa era de poucos e de pequenos escritórios de advocacia, o que permitia que em alguns aspectos a classe “se conhecesse”; e não havia escritórios “mundiais” (escolhidos também “mundialmente”) hoje vivemos uma nova situação.

E uma das consequências/mudanças é que se “antes” as escolhas de apoio externo de fato costumavam contemplar a pessoalidade, agora já precisamos discutir se ainda é assim – e seus impactos.

Como o “universo jurídico” (há poucos anos) era menor, era comum que as escolhas considerassem um conjunto bem mais amplo e (entendemos) adequado de aspectos e de fatores, como o efetivo relacionamento das pessoas, o conhecimento e a experiência dos profissionais (e não apenas dos escritórios), seu reconhecido saber jurídico, títulos acadêmicos, atividades correlatas como magistério, reputação entre os colegas e competências específicas e reconhecidas, que os “sistemas atuais” nem sequer contemplam/consideram.

Contratações e relacionamentos amplos, constantes e longos geravam, também eficiência econômico-financeira no tocante a honorários, pois era interesse de todos os evolvidos que a relação fosse fortificada não apenas pela confiança e pelos bons resultados obtidos, como também pelo valor adequado e justo da remuneração.

Costumava-se saber, inclusive, o(a) advogado(a) (e não apenas o escritório) que atendia cada empresa e até cada tema, sendo frequente que executivos tivessem orgulho e satisfação de mencionar quem era “o seu advogado”. Tudo isso “se perdeu”, e tem impactos na nossa classe, e também nas empresas.

Esses relacionamentos já não existem, pois além da escolha de apoio externo ocorrer por preço ou por “placa”, que pouco (ou nada) considera a efetiva pessoa que cuidará de cada tema, há também uma enorme rotatividade, pois a cada caso ou tema uma nova “concorrência” é aberta. E já até empresas que indicam que preferem que “tudo” seja automatizado, para que seja mais rápido e mais barato do que humanos conseguem fazer.

Nesses casos, os clientes/as empresas estão buscando advogados ou “máquinas”? E quais são as consequências, os ganhos, os riscos, os cuidados e as responsabilidades envolvidas?

Em outras palavras, já nem sabe quem de fato é o advogado escolhido e com o qual se tem (ou não tem, ao longo dos anos), realmente, uma relação, e uma confiança especial, apoiada em pessoalidade. E o que isso significa?

Com departamentos jurídicos maiores, e tão atarefados e pressionados por “eficiências”, além de não terem mais nem autonomia e nem orçamentos/ recursos razoáveis, as empresas nem sempre percebem que correm grandes riscos.

E se advogados internos nem mesmo participam de escolhas e de contratações de advogados externos, que por sua vez em geral trabalham em escritórios (que em muitos casos são também grandes), é comum que o contexto seja “puramente formal e burocrático”.

De forma crescente, não advogados, escolhem não advogados, com base em critérios equivocados, para relacionamentos pouco ou nada interativos, que nem se conhecem.

Como, nesses casos, após a contratação pouco ou nada convivem, por vezes nem mesmo com algum relacionamento efetivo, e cada vez mais automatizado.

Assim, sem que as pessoas efetivamente “se escolham” e sem que convivam, não se constrói confiança, nem parceria, e nem pessoalidade.

Adicionalmente, como as escolhas ocorrem pontualmente, pois o “sistema” demanda concorrência em cada caso, ninguém sabe (e nem quer saber) quem atuará no próximo caso, abandonando quase que por completo a antiga “fidelização”.

Mas são mesmo vários aspectos, sendo importante retomar que a questão das tecnologias (que deveriam ser ferramentas, utilizadas por humanos, mas que muitos defendem que “façam tudo”), e em especial da Inteligência Artificial, assim como a grande rotatividade de escritórios e de advogados, que certamente fragilizam relacionamentos, e a própria confiança, onde está a pessoalidade? E que preocupações, cuidados e eventuais “remédios” são necessários atualmente? As reuniões presenciais devem “voltar” ou não mais importam? Saber o nome do advogado que atua em cada caso ainda é importante?

Finalizamos este artigo com a esperança de que o público leitor perceba (através dos questionamentos apontados) a importância, a amplitude, a magnitude, a sensibilidade e a responsabilidade do tema, para que juntos sigamos acompanhando a questão, e buscando maneiras de garantir sempre o melhor (e mais seguro) atendimento aos clientes – em benefício inegável das empresas, mas também da advocacia.

Leonardo Barém Leite é sócio sênior do escritório “Almeida Advogados” em SP, especialista em Direito Societário e Contratos, Fusões e Aquisições, Governança Corporativa, Sustentabilidade e ESG, “Compliance”, Projetos e Operações Empresariais, e Direito Corporativo; também é árbitro, professor, conselheiro, e autor de diversas obras. Presidente da Comissão de Direito Societário, Governança Corporativa e ESG da OAB-SP/Pinheiros.

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