Acordo entre Mercosul e União Europeia: o que muda para a economia e os negócios do Brasil?

Acordo entre Mercosul e União Europeia: o que muda para a economia e os negócios do Brasil?
O tratado promete transformar o comércio entre América Latina e Europa e reflete mudanças profundas nas economias globais ao longo das últimas décadas/Ricardo Stuckert/PR
Publicado em 06/12/2024 às 10:34

Luciano Teixeira – São Paulo

Após um quarto de século de negociações, o tão aguardado acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE) virou realidade na manhã desta sexta-feira (6), durante a 65ª Cúpula do Mercosul, realizada em Montevidéu, no Uruguai. O anúncio foi feito pelo presidente do Uruguai e atual líder rotativo do Mercosul, Luis Lacalle Pou, ao lado da presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, com a presença dos chefes de Estado dos países membros do bloco sul-americano: Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Javier Milei (Argentina) e Santiago Peña (Paraguai).

Os líderes do Mercosul se reuniram nas primeiras horas do dia para finalizar o consenso sobre o texto do acordo, que também recebeu o aval da Comissão Europeia, responsável pelas negociações comerciais em nome da UE. O tratado estabelece a maior zona de livre comércio do mundo, abrangendo aproximadamente 700 milhões de consumidores e um Produto Interno Bruto (PIB) combinado de US$ 21,3 trilhões. Apesar da aprovação, o acordo ainda não terá aplicação imediata

“Não há soluções mágicas, não há nem burocratas nem governos que possam trazer a prosperidade. Essa é uma oportunidade que está em cada um de nós e na velocidade que possamos dar para esse acordo em cada um dos nossos países e na União Europeia como tal, para que isso possa avançar”, afirmou Lacalle Pou. “A nossa responsabilidade como presidentes, como pais de uma grande família, é deixar de lado o que não une.”

“Esse é um bom dia para o Mercosul, um bom dia para a Europa e para o nosso futuro compartilhado”, disse Von der Leyen. “Estamos focados na justiça e no respeito mútuo e o Mercosul trará ganhos para as empresas em ambos os lados”, avaliou.

Assim como o presidente do Uruguai, Ursula Von der Leyen destacou que o acordo Mercosul-União Europeia representa uma das “maiores alianças” globais e demonstra “para o mundo que o mundo pode ser guiado por valores, que os acordos são formas de compartilhar valores”. A presidente da Comissão Europeia enfatizou que esse tratado é um passo importante no compromisso com o Acordo de Paris.

Von der Leyen ressaltou o compromisso do presidente Lula com a preservação da Amazônia, afirmando que o acordo Mercosul-UE reforça essa prioridade. “Preservar a Amazônia é uma responsabilidade compartilhada por toda a comunidade [internacional], e esse acordo nos garante que os investimentos respeitem, de certa forma, o patrimônio natural que o Mercosul possui”, declarou.

Ao encerrar o anúncio, Von der Leyen lembrou o trabalho de todos que participaram das negociações ao longo de 25 anos para tornar o acordo uma realidade. “Toda uma geração dedicou seus esforços, sua visão e determinação para trazer esse acordo, e estamos fazendo disso uma realidade. Agora é a nossa vez de honrar esse legado. Vamos garantir, então, que esse acordo produza tudo que promete e que realmente ajude as gerações futuras”, finalizou.

O tratado promete transformar o comércio entre América Latina e Europa e reflete mudanças profundas nas economias globais ao longo das últimas décadas. Com foco em comércio de bens, serviços, propriedade intelectual e sustentabilidade, o acordo pode moldar o futuro das relações comerciais internacionais. Mas o que exatamente está em jogo e por que demorou tanto para ser concluído?

O que é um acordo de livre comércio?

Acordos de livre comércio são tratados bilaterais ou multilaterais que visam eliminar barreiras tarifárias e não tarifárias, promovendo um fluxo comercial mais livre entre as partes envolvidas. Eles abrangem temas como regras de origem, compras governamentais, barreiras técnicas ao comércio e defesa comercial. Mais amplos que os acordos de preferência comercial, que apenas reduzem tarifas para determinados produtos, esses pactos criam compromissos de longo prazo, definindo padrões mínimos para comércio, investimentos e outros aspectos econômicos.

O diálogo entre Mercosul e União Europeia teve início em 1999, durante a Cimeira da América Latina, Caribe e UE no Rio de Janeiro. Na época, as partes buscavam aproveitar suas economias complementares: o Mercosul, liderado pelo agronegócio brasileiro, e a UE, com sua indústria de alta tecnologia e mercados consolidados.

No entanto, as negociações foram marcadas por tensões. A UE buscava proteger setores sensíveis, como a agricultura francesa, enquanto o Mercosul pressionava por mais acesso a mercados industriais e agrícolas. A evolução econômica global também impactou as tratativas. A ascensão da China, a necessidade de adaptação às mudanças climáticas e as demandas por práticas comerciais sustentáveis transformaram o contexto inicial.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que o acordo pode gerar um crescimento de 0,46% no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro até 2040, além de estimular um aumento de 1,49% nos investimentos. Para as empresas, especialmente no setor de agronegócios, o tratado representa oportunidades de expansão em um dos mercados mais competitivos e regulados do mundo.

Os principais eixos do acordo

O tratado entre Mercosul e UE abrange uma ampla gama de áreas que refletem o dinamismo das economias contemporâneas. Abaixo, os principais tópicos do pacto são destacados:

  1. Comércio de Bens
    O acordo prevê que 92% dos produtos originários do Mercosul tenham tarifas eliminadas na União Europeia, enquanto 91% das exportações europeias para o Mercosul receberão o mesmo benefício. Para o agronegócio, o acesso será ampliado, com 97% das linhas tarifárias agrícolas do Mercosul recebendo tratamento preferencial na UE. Em contrapartida, 98% dos produtos agrícolas europeus terão acesso preferencial no Mercosul.A implementação dessas mudanças será gradual, com prazos que variam entre 10 e 15 anos, dependendo do setor. Isso visa garantir que as economias possam se adaptar às novas condições de mercado.
  2. Regras de Origem
    Este capítulo busca assegurar que apenas produtos efetivamente originários dos países membros usufruam dos benefícios tarifários. Mecanismos de verificação e combate a fraudes serão implementados para garantir a integridade do acordo.
  3. Facilitação de Comércio
    O tratado também visa simplificar processos alfandegários, aumentar a transparência e incorporar novas tecnologias para tornar as operações comerciais mais eficientes. Isso inclui a cooperação entre autoridades aduaneiras e o uso de guichês únicos para processamento de mercadorias.
  4. Pequenas e Médias Empresas (PMEs)
    As PMEs terão apoio específico para acessar mercados internacionais, incluindo a criação de canais de informação e programas de internacionalização. Esse esforço é crucial para fomentar o crescimento de empresas menores em um ambiente globalizado.
  5. Serviços e Investimentos
    O acordo inclui compromissos para evitar discriminação contra prestadores de serviços e investidores de um dos blocos em favor dos nacionais do outro. A padronização de normas deve aumentar a segurança jurídica e incentivar novos investimentos.
  6. Compras Governamentais
    Empresas dos dois blocos terão acesso igualitário a licitações públicas, ampliando a competitividade e introduzindo padrões internacionais de transparência nas compras governamentais.
  7. Propriedade Intelectual
    O tratado traz inovações no reconhecimento mútuo de indicações geográficas, beneficiando produtos tradicionais de ambas as regiões, como o vinho do Porto e a carne bovina brasileira. Além disso, reforça padrões internacionais para patentes, marcas e direitos autorais.
  8. Solução de Controvérsias
    Mecanismos específicos para resolver disputas comerciais serão implementados, complementando os já existentes na Organização Mundial do Comércio (OMC). A ideia é oferecer soluções rápidas e eficientes para conflitos comerciais.
  9. Sustentabilidade e Desenvolvimento
    O compromisso com o Acordo de Paris sobre Mudança do Clima está no centro das discussões. O tratado reforça a necessidade de práticas comerciais alinhadas com os objetivos climáticos globais, incentivando o uso de tecnologias limpas e a redução de emissões.
  10. Defesa Comercial e Salvaguardas
    Medidas antidumping e de proteção contra práticas desleais também estão contempladas. As regras garantem que os países possam proteger suas indústrias sem prejudicar a abertura comercial acordada.

Análise dos especialistas: por que este acordo é relevante?

Além de ser o maior tratado já negociado pelo Mercosul, o acordo reflete um momento importante na história do comércio global. Ele oferece uma oportunidade para o fortalecimento de economias em ambos os lados do Atlântico, promovendo um modelo de integração comercial baseado na cooperação e sustentabilidade.

No entanto, o sucesso do acordo dependerá da capacidade dos países de implementarem as reformas necessárias e de protegerem setores vulneráveis durante o período de transição. A supervisão contínua e o ajuste de políticas serão essenciais para garantir que os benefícios superem os desafios.

O acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia marca o início de uma nova era nas relações entre os blocos. Apesar de sua longa gestação, ele simboliza um esforço conjunto para enfrentar os desafios do comércio global e criar oportunidades para milhões de pessoas. Com um impacto potencial significativo na economia, no meio ambiente e nas relações internacionais, o tratado tem tudo para se tornar um marco histórico no cenário econômico mundial.

Roberto Dumas, professor de economia chinesa do Insper, avalia que o acordo é emblemático no contexto geopolítico atual. “A Europa está mais isolada devido à guerra na Ucrânia e suas consequências. Por outro lado, o Brasil precisa ampliar sua inserção nas cadeias globais de suprimento. A pandemia evidenciou a necessidade de diversificar fornecedores e mercados, e acordos como esse podem fortalecer economias locais e globais”, afirma.

Benefícios e setores impactados

O agronegócio surge como o principal setor beneficiado. Segundo Dumas, “tarifas reduzidas para exportação de carne bovina, frango, suína, milho e açúcar representam uma oportunidade significativa para o Brasil”. No entanto, ele alerta para os desafios que setores industriais enfrentarão. “Setores como o automotivo, farmacêutico e de equipamentos elétricos podem sofrer com a maior competição. A redução de tarifas para carros, por exemplo, pode impactar negativamente a indústria nacional”, explica.

O professor José Renato Ferraz da Silveira, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e especialista em política externa, concorda que há ganhos e concessões. “Algumas partes ganham mais do que outras. No curto prazo, pode parecer que o Brasil ficou em desvantagem, mas no médio e longo prazo, a integração econômica e o alinhamento com normas internacionais podem trazer benefícios substanciais para o país”, diz.

Resistências e caminhos para a implementação

Para os especialistas, o caminho para a implementação do acordo será longo. “Será um processo gradativo, como acontece com qualquer tratado internacional de grande porte. Há resistências em setores específicos, como o agrícola na Europa, e países como França e Polônia têm sido críticos à abertura de seus mercados”, avalia Ferraz da Silveira.

Dumas enfatiza que o Brasil precisa aproveitar os próximos 10 a 15 anos — período previsto para a total implementação do acordo — para resolver problemas estruturais. “Melhorar educação, infraestrutura e produtividade. Sem isso, continuaremos perdendo oportunidades de desenvolvimento sustentável”, alerta.

Acordo e geopolítica: diversificação estratégica

Para Dumas, o tratado também ajuda o Brasil a diversificar suas relações comerciais e reduzir a dependência da China. “Isso é importante em um contexto de crescente protecionismo global. Ao ampliar nossos mercados, aumentamos a resiliência econômica e ganhamos poder de barganha no cenário internacional”, analisa.

Ferraz da Silveira defende que o acordo reforça a posição do Brasil como líder regional no Mercosul e parceiro estratégico da União Europeia. “Pensando no futuro, o tratado fortalece a imagem do país no comércio global, crucial para seu crescimento econômico e político.”

Um copo meio cheio

Embora reconheçam os desafios, os especialistas convergem em um ponto: o acordo é um avanço estratégico para o Brasil. “Eu vejo o acordo como um ‘copo meio cheio’. É claro que ajustes e negociações ainda serão necessários, mas ele posiciona o Brasil como um player relevante no comércio global”, conclui Ferraz da Silveira.

Já Dumas destaca a importância de uma mudança estrutural no Brasil para aproveitar os benefícios do tratado. “Acordos como esse não bastam. Precisamos fazer nossa lição de casa, ou os problemas internos continuarão sendo nosso maior obstáculo”, finaliza.

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