Cannabis medicinal: implicações e perspectivas para o setor farmacêutico no Brasil
Lucas Fratari*
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão de grande relevância ao autorizar o cultivo e a produção de cânhamo industrial (cannabis com teor de THC inferior a 0,3%) exclusivamente para fins medicinais e farmacêuticos. Esta decisão desclassifica o cânhamo como substância entorpecente, conforme interpretação dos artigos 1º e 2º da Lei 11.343/06, e impõe à Anvisa e à União o estabelecimento de regulamentações específicas para controle e operação do cultivo no país, em um prazo de seis meses.
O julgamento seguiu o Incidente de Assunção de Competência 16 (IAC 16), que congrega casos semelhantes e possui efeito vinculante, o que significa que a interpretação dada pelo STJ a respeito do cânhamo deverá ser aplicada uniformemente por juízes e tribunais em todo o território nacional. Assim, o veredito passa a ser um marco regulatório importante para o setor de cannabis medicinal, abrindo um caminho para o desenvolvimento de uma cadeia produtiva que até agora estava restrita à importação, com altos custos para os pacientes e o sistema de saúde público.
A decisão do STJ pauta-se em bases sólidas, utilizando a definição de cânhamo industrial pela incapacidade de produzir efeitos psicoativos e, portanto, fora do alcance da legislação antidrogas. O cânhamo com THC inferior a 0,3%, segundo o STJ, não possui as características que o enquadrem como substância psicotrópica de interesse das normas antidrogas. Este entendimento fundamenta-se em legislações comparadas e diretrizes internacionais, como a Convenção Única sobre Entorpecentes, que não considera o cânhamo industrial como substância de controle rígido, e, portanto, permite regulamentações menos restritivas para o uso.
A decisão, contudo, impõe ao poder público — especialmente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e à União — a responsabilidade de criar normas que garantam a segurança e a rastreabilidade da cadeia produtiva para uso medicinal. O controle efetivo sobre as empresas autorizadas, bem como a fiscalização do cumprimento dos padrões sanitários, serão essenciais para evitar desvio de finalidade e assegurar a segurança pública. A Anvisa deverá estabelecer critérios técnicos para o licenciamento de pessoas jurídicas, verificar a idoneidade das empresas participantes e promover a vigilância necessária, desde o plantio até a comercialização dos produtos derivados.
Outro ponto relevante da decisão é o papel da Anvisa na interpretação das próprias normas. A decisão aponta para a necessidade de que as resoluções existentes, como a RDC 327/2019, sejam reavaliadas para permitir uma integração mais eficaz entre o setor de biotecnologia e o setor de saúde. A possibilidade de uma regulamentação específica para o cultivo de cânhamo medicinal no Brasil poderá reduzir significativamente a dependência de insumos importados, oferecendo um ambiente de desenvolvimento favorável para negócios do setor farmacêutico e de biotecnologia. Essa regulamentação também se alinha com as práticas internacionais, em que o cultivo de cânhamo para fins medicinais é amplamente aceito e regulamentado.
Do ponto de vista corporativo, essa decisão representa uma oportunidade estratégica para empresas de biotecnologia e farmacêuticas interessadas em investir no mercado nacional de cannabis medicinal. A produção local de insumos permitirá reduzir custos e melhorar a competitividade dos produtos, inclusive para o Sistema Único de Saúde (SUS), que atualmente enfrenta altos custos para disponibilizar medicamentos à base de cannabis. Assim, há uma expectativa de que a regulamentação possa contribuir para uma redução na burocracia do acesso aos tratamentos com cannabis medicinal – o que alivia o sistema judiciário e atende de forma mais direta e eficiente os pacientes.
Cabe destacar que, embora o STJ tenha estabelecido diretrizes para o cultivo de cânhamo com fins exclusivamente medicinais, a decisão não abarca a possibilidade de usos industriais da planta fora do campo da saúde. Questões como o uso para produção têxtil, alimentícia ou de biocombustíveis continuam fora do escopo da decisão e exigiriam novas normativas específicas e possivelmente intervenções legislativas.
Para o setor empresarial, a sentença oferece uma base para o planejamento estratégico de entrada e expansão no mercado de cannabis medicinal no Brasil. Com a regulamentação a ser elaborada pela Anvisa e União, espera-se que o setor possa operar com maior previsibilidade, segurança jurídica e alinhamento aos padrões internacionais.
*Lucas Fratari é mestre em direito e sócio do escritório LGF Advogados Associados.