Sherlock Holmes e a lei dos detetives particulares: impactos nos processos trabalhistas
Daniel Vergna, Marcel Ribas, Paula Indalecio e Paulo Brancher*
Sherlock Holmes é, talvez, o mais famoso personagem de ficção policial criado pela literatura britânica. Ele é um investigador do final do século XIX e início do século XX, que ficou famoso por utilizar, na resolução dos seus mistérios, o método científico e a lógica dedutiva. Sua habilidade em desvendar crimes aparentemente indecifráveis, até mesmo para a Scotland Yard, transformou seu nome em sinônimo de detetive pelo mundo afora.
É fato que o trabalho de detetives e de investigadores particulares existe há muito tempo e é objeto de inúmeras obras literárias e do cinema mas, apenas no ano de 2017, a profissão foi efetivamente regulamentada no Brasil por meio da Lei 13.432/2017. Esta lei define o detetive particular como “o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante”.
No âmbito jurídico, a atuação do advogado como investigador, com ou sem assistência de outros profissionais legalmente habilitados, foi regulamentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil por meio do Provimento nº 188/2018, que se aplica especialmente para a produção de provas voltadas a utilização em contextos criminais, sem prejuízo de outras finalidades.
Os recursos de pesquisa permitidos ao investigador/detetive contratado são aqueles disponíveis a qualquer cidadão, que não podem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 3º do Decreto 50.532/1961).
Pela lei, o trabalho do detetive particular diferencia-se da investigação criminal, pois o detetive não possui poder de polícia (isto é, não pode condicionar a liberdade e a propriedade dos indivíduos mediante ações preventivas e repressivas). O detetive age como um despachante do cliente, arrecadando informações de natureza não criminal, que pode ser feita por qualquer pessoa, inclusive pela parte interessada/contratante. Essa lei não conferiu ao detetive particular qualquer prerrogativa ou vantagem na coleta de dados, pelo contrário, trouxe mais exigências para a formalização do contrato e admitiu sua colaboração somente dentro de rígidos limites.
O detetive particular não pode executar técnicas ordinárias de investigação (como oitivas e quebra de sigilo de dados), nem meios extraordinários de obtenção de prova (como infiltração policial comum ou virtual). Também não tem autorização para implementar ações de inteligência de segurança pública.
O detetive pode apenas pesquisar informações em fontes abertas (como redes sociais e sites de órgãos públicos e privados), em locais públicos (como vias públicas e áreas não restritas de estabelecimentos) e sem molestar o “investigado”. A atuação do detetive fora dos limites permitidos em lei enseja responsabilidade pessoal, civil e ilicitude de provas.
A utilização de investigadores particulares para obtenção de provas em processos trabalhistas levanta questões complexas, que envolvem a proteção de direitos fundamentais dos trabalhadores, como a privacidade e a intimidade, contrapostos pela necessidade de preservar os interesses das empresas. Em situações em que se suspeita de condutas que possam justificar uma demissão por justa causa, por exemplo, ou que representem prejuízos financeiros, patrimoniais ou de reputação para a empresa, essa prática pode ser cogitada. No entanto, sua aplicação exige cautela e observância estrita às normas legais para que as provas obtidas sejam válidas e lícitas.
Limites e diretrizes para uma investigação lícita
Para que a contratação de uma investigação particular seja considerada legítima, de modo que as provas possam ser admitidas em um processo trabalhista, algumas diretrizes precisam ser seguidas pelas empresas:
- Observar aos princípios e obrigações estabelecidos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD): considerando que os investigadores particulares poderão coletar e compartilhar com a empresa dados pessoais dos empregados (isto é, informações relativas a uma pessoa física identificada ou identificável), eles e a empresa deverão cumprir as disposições da lei. Dentre outras obrigações, é recomendável que a empresa:
- realize o tratamento de dados pessoais coletados no âmbito da investigação particular para propósitos legítimos, específicos e explícitos, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades, em observância aos princípios da finalidade e adequação;
- se limite a tratar os dados pessoais coletados no âmbito da investigação particular ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, de forma pertinente, proporcional e não excessivo em relação às finalidades do tratamento de dados, em observância ao princípio da necessidade;
- informe adequadamente seus empregados a respeito da possibilidade de a empresa contratar investigadores particulares para fins de coleta de provas em processos trabalhistas, em observância ao princípio da transparência. Tal informação costuma ser detalhada na política de privacidade da empresa direcionada a empregados e ex-empregados;
- adote medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais coletados de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão;
- celebre um contrato com o investigador particular para regular os detalhes das atividades de tratamento de dados pessoais realizadas pelas partes (incluindo o compartilhamento de dados do investigador com a empresa), bem como estabelecer um regime de responsabilidade contratual entre elas em caso de descumprimento das disposições do contrato e da LGPD.
- Respeito à privacidade e intimidade: as investigações devem ser realizadas em espaços públicos ou em situações nas quais o trabalhador não tenha uma expectativa razoável de privacidade. Investigações que ocorram fora desses limites podem ser consideradas abusivas por violar direitos à intimidade e privacidade;
- Necessidade e proporcionalidade: a empresa deve avaliar se a investigação é realmente necessária e se os meios empregados são proporcionais à suspeita ou ao problema que se quer resolver. Essa proporcionalidade é importante para demonstrar que a investigação é um meio justificado de proteger interesses legítimos da empresa.
Admissibilidade das provas em processos trabalhistas
A Justiça do Trabalho admite a produção de provas obtidas por investigações corporativas, desde que elas tenham sido colhidas de forma lícita. Provas obtidas de maneira ilegal, como invasão de privacidade, gravações não autorizadas ou monitoramento do empregado sem sua prévia ciência e mediante motivos plausíveis, podem ser desconsideradas pelo juiz e, em alguns casos, podem resultar em condenações para as empresas, tanto em indenizações por danos morais como em sanções adicionais.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) e os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) têm reforçado que, para ser válida, a prova deve respeitar o direito constitucional à privacidade e à intimidade. Neste cenário, é possível defender o uso de investigações particulares/corporativas para obtenção de provas, desde que sejam demonstrados que os métodos utilizados não violaram os direitos da personalidade do investigado e que a empresa agiu com a intenção de proteger um interesse legítimo.
As empresas também podem adotar outras práticas de investigação interna, como auditorias, entrevistas e monitoramento de dados corporativos, sempre observando as normas de compliance e proteção de dados. Caso optem pela contratação de uma investigação particular, é fundamental que se faça um contrato detalhado com o profissional, especificando os limites da investigação e garantindo que todas as medidas estejam em conformidade com a lei.
Não é raro que as investigações corporativas internas sejam adotadas para apuração de condutas que envolvem uma demissão por justa causa, por exemplo. São diversos os precedentes dos tribunais trabalhistas, no sentido de conferir validade às investigações que analisam documentos e mensagens que partem das máquinas utilizadas pelo empregado, nas hipóteses em que os equipamentos são de propriedade da empresa e, portanto, a leitura e acesso pelo empregador não violaria o sigilo de correspondência.
Assim foi a decisão do TST, ao analisar a possibilidade de utilização de e-mail corporativo como meio de prova lícito para validação de uma dispensa por justa causa, destacando que “consoante entendimento consolidado neste Tribunal, o e-mail corporativo ostenta a natureza jurídica de ferramenta de trabalho. Daí porque é permitido ao empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado em e-mail corporativo, isto é, checar as mensagens, tanto do ponto de vista formal (quantidade, horários de expedição, destinatários etc.) quanto sob o ângulo material ou de conteúdo, não se constituindo em prova ilícita a prova assim obtida” e arremata no sentido de que “não viola os arts. 5º, X e XII, da Constituição Federal, portanto, o acesso e a utilização, pelo empregador, do conteúdo do “e-mail” corporativo […]”.
Ainda no âmbito das investigações corporativas, no contexto dos crescentes avanços tecnológicos, não há como deixar de mencionar a utilização das provas digitais.
Atento à temática, o Código de Processo Civil (CPC) passou a autorizar as partes a empregarem todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa, e influir eficazmente na convicção do juiz (art. 369 do CPC). A lei processual também legitimou, de certa forma, a investigação particular (art. 384 do CPC), ao permitir que seja dada fé pública a atos investigativos praticados por agentes não estatais, a partir de uma ata notarial, tida como instrumento apto a atestar ou documentar a existência e o modo de existir de algum fato. É possível, inclusive, constar da ata notarial as informações apresentadas por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos.
A Justiça do Trabalho, por sua vez, desde 2021, investe em uma ação institucional de formação e especialização de magistrados e servidores na produção de provas por meios digitais. A iniciativa “Programa Provas Digitais” tem como objetivo a utilização de informações tecnológicas para auxiliar magistrados na instrução dos processos, especialmente na produção de provas para aspectos controvertidos.
Tais evoluções tecnológicas tornam necessário repensar o modelo tradicional de produção de provas na Justiça do Trabalho, baseado, na maioria dos casos, na oitiva das partes e testemunhas. Dessa forma, a utilização de registros digitais para a demonstração de fatos se mostra essencial em determinadas ocasiões.
Tanto é assim que a Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho cassou uma liminar que impedia que uma instituição financeira utilizasse prova digital de geolocalização para comprovar jornada de um bancário. Segundo o colegiado, a prova seria adequada, necessária e proporcional e não estaria violando o sigilo telemático e de comunicações garantido na Constituição Federal.
Ainda, segundo o Ministro Amaury Rodrigues, relator do recurso, a produção de prova digital é amparada por diversos ordenamentos jurídicos, tanto de tribunais internacionais como por leis brasileiras, como a LGPD, a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet, que possibilitam o acesso a dados pessoais e informação para defesa de interesses em juízo. Houve divergência de entendimentos dentro da SDI-2, pois a corrente minoritária defendia a possibilidade de o banco adotar medidas menos invasivas para provar as suas alegações.
É por esse motivo que a assessoria jurídica preventiva é indispensável para que a empresa compreenda os limites legais de sua atuação e evite qualquer prática que possa ser interpretada como violação de direitos da personalidade dos empregados.
Investigações particulares para embasar ações revisionais trabalhistas
A utilização de provas obtidas por investigações particulares pode ter especial relevância em Ações Revisionais na Justiça do Trabalho, que tem por objetivo modificar ou rever uma decisão condenatória de trato sucessivo ou que se prolonga no tempo. É cabível em caso de eventual modificação das circunstâncias (estado de fato ou de direito) que fundamentaram aquela condenação.
Uma das hipóteses mais recorrentes na Justiça do Trabalho são as condenações que envolvem doenças ocupacionais e/ou acidentes de trabalho que resultem no pagamento de pensão mensal vitalícia e que tiveram como base um laudo médico de incapacidade laboral, em regra, temporária.
Nesse contexto, uma investigação particular pode revelar mudanças relacionadas a reaquisição da capacidade do trabalhador que justifique a reconsideração da decisão anteriormente proferida pela Justiça do Trabalho.
O cabimento de Ação Revisional para tais hipóteses é pacífico na jurisprudência trabalhista, desde que corroborada por elementos consistentes de prova que evidenciem a mudança do status quo daquele trabalhador, o que permitirá a revisão do julgamento anterior para readequação ao seu estado de saúde atual.
Portanto, para as empresas, a utilização de investigações particulares pode ser uma ferramenta valiosa na gestão de passivos trabalhistas, especialmente em casos de doenças ocupacionais em que houve o reconhecimento de incapacidade. No entanto, é fundamental que essas investigações sejam conduzidas com rigor ético e dentro dos limites legais para garantir sua admissibilidade e eficácia no âmbito judicial, assim como evitar que as empresas sofram penalidades e/ou danos reputacionais por ultrapassar os limites legais da investigação.
Embora o tema seja controverso, no âmbito trabalhista, visto que as investigações corporativas não podem ferir a privacidade e a intimidade do empregado ou ex-empregado, a validade de formas distintas de obtenção das provas ganha cada vez mais força no processo trabalhista.
Desde que respeitados os direitos da personalidade do investigado, há espaço para que as investigações privadas funcionem como importante ferramenta na obtenção de provas lícitas que podem ser utilizadas e consideradas válidas nos processos trabalhistas.
*Daniel Vergna, Marcel Ribas, Paula Indalecio e Paulo Brancher são sócios do Mattos Filho.
**O artigo também teve contribuição de Leandro Ricci, Tayna Ortega e Maíra Scala, que são advogados do Mattos Filho.