Protecionismo francês: Por quê os frigoríficos brasileiros estão reagindo ao boicote do Carrefour?
Luciano Teixeira – São Paulo
A recente decisão de grandes frigoríficos brasileiros, como JBS e Masterboi, de interromper o fornecimento de carnes ao Carrefour no Brasil, está gerando impactos importantes no setor de varejo e no mercado de carnes. A medida foi uma resposta ao boicote anunciado pelo CEO global do Carrefour, Alexandre Bompard, que declarou que a rede francesa não venderá mais carnes provenientes de países do Mercosul em suas lojas na Europa. O movimento gerou uma reação em cadeia no Brasil, mobilizando o setor agropecuário e autoridades políticas.
O Carrefour Brasil, que possui uma fatia considerável do mercado varejista no país, afirmou que a decisão dos frigoríficos pode impactar o abastecimento em algumas unidades. Embora o grupo negue qualquer desabastecimento imediato, especialistas apontam que o corte no fornecimento de carnes in natura pode gerar rupturas no estoque em regiões onde a rede francesa tem uma presença predominante.
“A questão é como redistribuir essa produção. Redes como o Carrefour têm uma logística mais ampla e conseguem atuar em regiões onde pequenos supermercados não têm presença. A retirada da carne dessa rede cria um desabastecimento que pode gerar aumento de preços nas localidades onde o Carrefour é predominante. Se o boicote durar muito tempo, o impacto na inflação será inevitável”, afirma o economista e advogado Alessandro Azzoni.
“Se o Carrefour da França ou outros mercados internacionais reduzirem suas compras, isso pode beneficiar o mercado interno, aumentando a oferta de carne aqui no Brasil, onde há uma forte demanda reprimida. O mercado doméstico tem capacidade para absorver um aumento na oferta de carne, o que ajudaria a estabilizar os preços para o consumidor, especialmente em um cenário de alta inflação nos alimentos”, avalia a economista, planejadora financeira e professora da ESPM Paula Sauer.
Reação política e institucional
O boicote do Carrefour teve repercussão no setor político brasileiro. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, criticaram publicamente a decisão da rede francesa. Ambos reforçaram a importância do agronegócio brasileiro para o mercado global e alertaram sobre possíveis retaliações comerciais.
“Se o Carrefour decidiu boicotar produtos do Mercosul, nossos frigoríficos estão no direito de responder na mesma medida. É um movimento que visa proteger a reputação do setor agropecuário brasileiro, que opera sob regras rígidas de qualidade e sustentabilidade”, destacou Lira em coletiva.
Fávaro, por sua vez, enfatizou que a medida do Carrefour não reflete a realidade do agronegócio nacional. “O Brasil é referência em sustentabilidade e qualidade no mercado de carnes. A decisão do Carrefour é infundada e prejudica não só os frigoríficos, mas também os consumidores”, afirmou.
Além disso, o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, defendeu um boicote contra o Carrefour e incentivou outros frigoríficos a suspenderem suas entregas para a rede.
Retratação
O Carrefour enviou uma carta de retratação em resposta às críticas geradas pelo boicote às carnes brasileiras. No documento, a empresa reconhece os esforços do setor agropecuário brasileiro no cumprimento de padrões ambientais e sanitários. “Valorizamos profundamente a parceria com o Brasil, um mercado estratégico e fundamental para o abastecimento global de carnes de qualidade”, afirma a nota.
Apesar da retratação, lideranças do setor mantêm cautela e cobram ações concretas. A resposta busca diminuir as tensões e preservar relações comerciais em um momento delicado para o varejo e o agronegócio.
O Carrefour Brasil enfrenta agora o desafio de reestruturar sua cadeia de fornecedores para garantir o abastecimento. A empresa, que já é uma das maiores compradoras de carne no país, depende fortemente de grandes frigoríficos como a JBS, que representa cerca de 80% do fornecimento de carnes in natura da rede.
Para evitar impactos maiores, o Carrefour anunciou que está buscando novos fornecedores e reforçando parcerias com frigoríficos menores. No entanto, especialistas alertam que a mudança pode aumentar os custos logísticos e operacionais, o que pode levar ao repasse desses custos para o consumidor final.
Cenário internacional e geopolítica
O boicote anunciado pelo CEO global do Carrefour está relacionado à pressão de agricultores franceses contra o acordo entre Mercosul e União Europeia. Esses produtores alegam que os países sul-americanos não seguem as mesmas regras ambientais e sociais aplicadas na Europa, o que criaria uma concorrência desleal.
No entanto, representantes do setor agropecuário brasileiro rebateram as acusações, destacando que a legislação ambiental e sanitária do Brasil está entre as mais rigorosas do mundo. Uma carta assinada por 44 entidades do setor criticou a decisão do Carrefour, classificando-a como protecionista e incoerente com os princípios do livre mercado. As entidades classificaram a decisão como infundada e incompatível com os princípios do livre mercado, da sustentabilidade e da cooperação internacional.
“A decisão anunciada demonstra uma abordagem protecionista que contradiz o papel de uma empresa global com operações em mercados diversos e interdependentes,” afirma a carta.
Os signatários também destacaram a posição do Brasil como líder mundial na produção e exportação de proteínas animais, mencionando os avanços do setor nas últimas décadas.
“Nos últimos 30 anos, a pecuária brasileira aumentou sua produtividade em 172%, enquanto reduziu a área de pastagem em 16%. Se uma carne brasileira não serve para abastecer o Carrefour na França, é difícil entender como ela poderia ser considerada adequada para abastecer qualquer outro mercado,” diz o documento.
Para Alessandro Azzoni, não é coincidência que o Carrefour, sendo uma rede francesa, adote essa posição em um momento em que há pressões contra o acordo Mercosul-União Europeia. “Existe um claro alinhamento com o discurso protecionista francês, liderado pelo presidente Emmanuel Macron, que busca beneficiar seus agricultores locais enquanto critica a competitividade dos produtos brasileiros”, avalia.
“A decisão do Carrefour parece parte de uma estratégia protecionista, usando questões ambientais como justificativa. No entanto, a carne brasileira já atende a padrões globais de qualidade, muitas vezes superiores aos exigidos pela União Europeia. O Brasil exporta para mercados com regulamentações muito rigorosas, como a China e outros países da Ásia. Se um mercado como o francês recuar, há opções para redirecionar nossa produção, desde que o escoamento seja bem estruturado”, analisa Paula Sauer.
O episódio reforça a crescente tensão entre as demandas ambientais e comerciais globais e a necessidade de o Brasil fortalecer sua posição como líder no mercado de carnes. “Os frigoríficos têm todo o direito de retaliar, especialmente por serem os maiores do mundo. Mas é uma decisão delicada, já que, sendo produtos perecíveis, eles precisam garantir o escoamento da produção. Caso contrário, o impacto pode ser negativo para eles mesmos”, analisa Azzoni. Para o especialista, retaliar o Carrefour dentro e fora do Brasil é uma forma de mostrar força diante de um posicionamento que prejudica toda a cadeia produtiva nacional.
Enquanto os frigoríficos brasileiros avaliam os próximos passos em relação à retaliação, a rede varejista terá que lidar com os impactos operacionais e buscar formas de manter o abastecimento sem comprometer sua competitividade. Uma lição para rede francesa de que uma declaração “mal dada” pode gerar prejuízo e impactos negativos num dos mercados mais importantes para a companhia global na América Latina.