Alexandre Zavaglia: “A IA não substitui o advogado, mas oferece suporte para decisões mais eficientes”
A inteligência artificial (IA) está rapidamente se integrando ao setor jurídico, revolucionando a prática do Direito e trazendo novas possibilidades para advogados, empresas e órgãos públicos. Em um cenário onde a automação, a análise preditiva e o suporte à decisão são cada vez mais viáveis, o mercado jurídico brasileiro desponta como um dos mais avançados no uso da IA, graças à vasta disponibilidade de dados e ao compromisso com inovação.
Para explorar os impactos e o futuro da IA no Direito, conversamos com Alexandre Zavaglia, especialista em IA aplicada aos serviços jurídicos e um dos principais nomes desse movimento no Brasil. A entrevista aborda como a tecnologia está transformando áreas como litígios e contratos, quais são as preocupações éticas e de governança, além das oportunidades para democratizar o acesso à Justiça.
Zavaglia acabou de lançar o livro “Inteligência Artificial Aplicada aos Serviços Jurídicos“, na Fenalaw 2024. Co-organizado por Maria Juliana do Prado Barbosa, CEO da Fenalaw, a obra reune exemplos concretos de como escritórios de advocacia, departamentos jurídicos de grandes empresas e o poder público estão utilizando a IA para transformar a gestão de processos, a pesquisa avançada e o compliance. O livro destaca os cuidados necessários para sua aplicação ética e eficaz, mostrando como a IA pode potencializar o trabalho dos advogados ao invés de substituí-los, trazendo agilidade, precisão e inovação ao Direito.
Nesta conversa, Zavaglia compartilha sua visão sobre como a IA pode potencializar o trabalho jurídico, aumentar a precisão e trazer inovação ao setor. Acompanhe a seguir.
Luciano Teixeira: Como começou o movimento de adoção da inteligência artificial no setor jurídico?
Alexandre Zavaglia: Esse movimento começou de fato em 2016-2017. Até então, o mercado jurídico já trabalhava com automação, mas foi em 2017 que os primeiros projetos de inteligência artificial realmente ganharam força. Um diferencial é que o Brasil se destaca globalmente pela disponibilidade de dados abertos, com cerca de 80 milhões de processos e um milhão de advogados. Essa abundância de dados permitiu o desenvolvimento de modelos de IA voltados para o jurídico em português.
Luciano Teixeira: Esse contexto de dados abertos realmente faz do Brasil um case mundial?
Alexandre Zavaglia: Sim. Nos Estados Unidos e na Europa, a legislação de dados é mais restrita. O Brasil, com sua política de dados abertos, conseguiu avançar rapidamente em IA jurídica. Em eventos internacionais, como o que participei recentemente na ONU e na Alemanha, o Brasil se destacou ao apresentar o uso de IA em um contexto judicial. Começamos usando IA para classificar informações, transformando dados não estruturados, como PDFs, em dados organizados. Esse processo inicial foi essencial para o avanço que temos hoje.
Luciano Teixeira: Em quais áreas do direito a IA tem sido mais aplicada?
Alexandre Zavaglia: Litígios e contratos são as duas áreas principais. Por conta do alto volume de judicialização no Brasil, começamos a classificar dados com IA, como partes envolvidas e argumentos jurídicos. Esse trabalho de classificação abriu caminho para entender padrões de decisão e identificar tendências. Por exemplo, ao analisar casos específicos em diferentes comarcas, conseguimos prever faixas de acordos e chances de condenação.
Luciano Teixeira: Mas a IA pode, por exemplo, ajudar a definir se um caso será ganho ou perdido?
Alexandre Zavaglia: Ela oferece um suporte com base em probabilidade. Por exemplo, podemos ter uma previsão de 80% de chances de sucesso com uma tese específica, mas isso é apenas um suporte para a tomada de decisão do advogado, não uma substituição da análise jurídica.
Luciano Teixeira: Quais os desafios enfrentados pelos escritórios, especialmente para os menores, na adoção de IA?
Alexandre Zavaglia: Até 2022, o maior desafio era o custo e a necessidade de equipes especializadas. A IA generativa, lançada no final do ano passado, trouxe uma interface mais acessível, democratizando o acesso para escritórios pequenos e médios. Hoje, ferramentas de IA estão integradas a sistemas de gestão de processos e análise de contratos, o que reduz custos e facilita o uso.
Luciano Teixeira: Então, a IA realmente se tornou acessível?
Alexandre Zavaglia: Sim, hoje, há soluções gratuitas e outras com valores acessíveis, como assinaturas mensais a partir de 20 dólares. A IA saiu da academia e entrou no cotidiano dos escritórios, permitindo que até advogados individuais utilizem a tecnologia para criar aplicações sob medida.
Luciano Teixeira: Com relação à governança e aos riscos, quais são as principais preocupações ao usar IA no direito?
Alexandre Zavaglia: Temos três principais preocupações: primeiro, a alucinação (erros na geração de textos), pois a IA pode gerar informações inverídicas. Segundo, os direitos autorais, já que a IA se baseia em fontes preexistentes e nem sempre cita corretamente. E, por fim, o compartilhamento de dados sensíveis, especialmente na configuração padrão, onde o conteúdo pode ser compartilhado na base de dados geral.
Luciano Teixeira: E como essas preocupações se manifestam na prática?
Alexandre Zavaglia: A IA é baseada em estatísticas, então pode gerar respostas incorretas ou “alucinações”. Ela é projetada para criar textos coerentes, mas nem sempre verdadeiros. Esse risco é amplificado quando lidamos com dados jurídicos, onde a precisão é fundamental. Por isso, a revisão é sempre necessária, e a supervisão de um advogado é essencial.
Luciano Teixeira: Em algum momento a IA poderá substituir o trabalho dos advogados?
Alexandre Zavaglia: Não. A IA é uma ferramenta de suporte e otimização, auxiliando o advogado a organizar informações e a tomar decisões de forma mais eficiente. Ela facilita as tarefas preparatórias, mas a análise final e a estratégia são sempre do advogado.
Luciano Teixeira: Como você vê o futuro da IA no setor jurídico?
Alexandre Zavaglia: O futuro está nos projetos corporativos com uso de IA em bases de dados privadas e proprietárias. Já começamos a integrar modelos de IA a bases de dados próprias, onde os dados são mantidos em um ambiente seguro e sem compartilhamento. Isso aumenta a precisão, reduz as alucinações e permite que a IA se ajuste ao estilo e às teses específicas do escritório.
Luciano Teixeira: Por fim, quais ferramentas de IA você considera essenciais para escritórios e jovens advogados?
Alexandre Zavaglia: São três: uma solução de análise e gestão de processos judiciais, uma ferramenta de análise e gestão de contratos e, por último, uma aplicação de IA generativa para automatizar tarefas do dia a dia. A IA generativa ajuda a organizar o conteúdo e traz insights valiosos, facilitando muito o trabalho.
Luciano Teixeira: Você pode nos contar um pouco mais sobre o livro “Inteligência Artificial Aplicada aos Serviços Jurídicos”?
Alexandre Zavaglia: Nele, trazemos 13 casos concretos e projetos corporativos de uso da inteligência artificial no setor jurídico, desde escritórios de advocacia até departamentos jurídicos de grandes empresas, como o Banco do Brasil, e também no poder público, com a AGU, que tem um dos projetos mais avançados. Este livro representa uma colaboração ampla com o mercado, tanto no aspecto técnico quanto no cultural, envolvendo o uso da IA para transformar a prática jurídica. Nos últimos anos, criamos um ambiente colaborativo, e a Fenalaw reflete muito isso. Há um movimento contínuo de compartilhamento de conhecimento e discussão de como a tecnologia evolui no setor.
Luciano Teixeira: Esse ambiente de colaboração é essencial para a inovação, não é?
Alexandre Zavaglia: Sem dúvida. Hoje, o mercado jurídico colabora ativamente em eventos e na troca de experiências. Vemos a IA sendo aplicada em várias frentes, desde a formação de equipes até a implementação da tecnologia. Além disso, estamos lançando um framework de IA generativa, fruto de seis meses de trabalho. Esse material detalha o passo a passo para a aplicação da IA em diversas áreas, com cerca de 80 páginas, oferecendo um guia prático e detalhado.
Luciano Teixeira: Esse framework também será disponibilizado ao público?
Alexandre Zavaglia: Sim, será acessível gratuitamente. Esse conteúdo é bastante rico e mostra como as empresas estão usando a IA para transformar o setor.