Sobre a inaplicabilidade do conceito de preço de mercado aos Contratos Built to Suit

Sobre a inaplicabilidade do conceito de preço de mercado aos Contratos Built to Suit
Tais contratos possuem um modelo econômico e social, assim como de distribuição de riscos, muito próprio e bastante diferente dos contratos de locação típicos/Pixabay
Publicado em 22/10/2024 às 18:06

Farley Menezes*

Os contratos de locação built to suit (“Contratos BTS”) têm encontrado grande difusão no Brasil, sendo utilizados em diversos tipos de produtos imobiliários. Dentro de sua estrutura, os Contratos BTS contemplam os seguintes elementos:

(i) “prévia aquisição, construção ou substancial reforma” pelo empreendedor-locador ou por terceiros;

(ii) especificação do imóvel “pelo pretendente à locação”; para que o imóvel seja então locado “por prazo determinado”; de modo que prevaleçam

(iii) “as condições livremente pactuadas no contrato respectivo”; podendo ser

(iv) “convencionada a renúncia ao direito de revisão dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação”.

É a presença desses elementos, atualmente disciplinados pelo art. 54-A da Lei 8.245, de 18/10/91 (“Lei de Locações”), que confere aos Contratos BTS a aptidão para promover o encontro de interesses entre quem pretende ocupar um imóvel não residencial, sem imobilizar capital nem investir na aquisição, construção ou reformas, e aqueles que, em geral munidos de maior especialização, dispõem, portanto, de expertise e, sobretudo, capital para investir na aquisição, construção ou reforma substancial desse imóvel, customizando-o para o pretendente a ocupante.

Este, por sua vez, compromete-se a retornar esse investimento do empreendedor-locador mediante o pagamento de um determinado número de aluguéis-parcelas, reajustáveis pelo índice de correção eleito contratualmente pelas partes, por um prazo definido à partida, geralmente de 10 ou 15 anos.

Tais contratos possuem um modelo econômico e social, assim como de distribuição de riscos, muito próprio e bastante diferente dos contratos de locação típicos, que têm por fim apenas disciplinar a cessão onerosa do uso e gozo de imóveis do locador ao locatário. Os Contratos BTS são conhecidos como “contratos de locação atípicos”, expressão amplamente adotada no mercado imobiliário brasileiro.

Embora seja tecnicamente inadequada, essa expressão serve ao propósito prático de traçar a linha divisória jurídica que separa os Contratos BTS dos contratos de locação típicos; ambos, ao fim e ao cabo, endereçam a locação de imóveis urbanos, mas por meio de estruturas jurídicas distintas em sua essência socioeconômica.

Não obstante essas diferenças estruturais, ambas as modalidades contratuais estão sujeitas às disposições procedimentais da Lei de Locações. No caso específico dos Contratos BTS, essa sujeição decorre do teor da parte final do caput do art. 54-A, que estabelece que, para tais contratos, prevalecerão “as disposições procedimentais previstas” na Lei de Locações.

Assim, embora o art. 54-A tenha tido como objetivo afastar dos Contratos BTS a aplicação do regime de direito material das locações típicas, por incompatibilidade estrutural, a intersecção desses contratos com os de locação típicos persiste na submissão comum às disposições procedimentais da Lei de Locações.

Em razão dessa intersecção, que por vezes gera incompreensão sobre as diferenças de fundamentos socioeconômicos entre os Contratos BTS e os contratos de locação típicos, certos conceitos mais próprios dos contratos típicos acabam circulando em discussões (judiciais ou arbitrais) sobre Contratos BTS. 

Sem pretensão de esgotar o assunto, este artigo visa discutir a inaplicabilidade do uso desse argumento (ou seja, o elemento “preço de mercado”) quando se trata de Contratos BTS.

Contratos de locação, em geral, típicos ou atípicos, compreendem uma série de elementos, dos quais o valor do aluguel é, via de regra, o mais importante para ambas as partes. Para a formação desse valor, contribuem vários fatores: área locada, prazo, garantia, localização e demais características do imóvel[4].

Cada um desses elementos, em maior ou menor grau, participa da composição do valor final do aluguel; certamente, algumas cláusulas do instrumento contratual terão um impacto maior na valoração do aluguel do que outras. Cláusulas que tratam dos pontos acima referidos provavelmente terão maior destaque e importância na composição do valor do aluguel do que aquelas mais ancilares, quase sempre padronizadas, que compõem a parte do contrato usualmente conhecida como “disposições gerais”.

Vale dizer que, entre os elementos que impactam a formação do valor do aluguel, a localização é, por certo, um dos mais importantes, em sintonia com o mantra do mercado imobiliário: “location, location, location“.

O ponto é que, qualquer que seja o elemento considerado, para chegarmos ao preço de mercado precisaremos de uma base de dados que, dentro de um determinado espaço amostral (ou seja, um conjunto definido de imóveis), permita comparar esses imóveis entre si (comparabilidade). Na ausência de um conjunto de elementos comparáveis, não há como se chegar a esse parâmetro — não há o que comparar, ou a comparação diz respeito a elementos não comparáveis.

O preço de mercado nada mais é do que um parâmetro de comparação amplamente utilizado no mercado imobiliário para orientar a formação do valor a ser adotado para uma determinada locação de imóvel. No mínimo, o preço de mercado pode servir como norteador na formação do parâmetro-base para o chamado “preço pedido”, ou seja, o preço da oferta inicial no âmbito da negociação entre o proprietário/locador e o pretendente a locatário.

Além de sua aplicação nas negociações para a formação do contrato, o preço de mercado também é relevante nas locações quando se trata de ação revisional, pois, conforme disposto no art. 19 da Lei de Locações, esse parâmetro é o principal balizador finalístico dessas disputas:

“Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado.” (grifamos)

Esse dispositivo integra as disposições procedimentais da Lei de Locações.

Embora os Contratos BTS, como se pode extrair do próprio texto da parte final do caput do art. 54-A, estejam sob a égide das disposições procedimentais da Lei de Locações, é facultado, nos termos do §1º do art. 54-A, convencionar (ou não) a renúncia ao “direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação”.

Ao convencionarmos tal renúncia, a utilidade do art. 19 da Lei de Locações desaparece, e o preço de mercado o acompanha nessa queda, pois o dispositivo que lhe serve de suporte deixa de ser aplicável. Nesse caso, a referência a preço de mercado, antes mesmo de qualquer análise de pertinência conceitual, torna-se inaplicável para qualquer fim.

Pensando exclusivamente no aspecto conceitual, haveria algum fundamento em abordar a variável preço de mercado quando tratamos dos Contratos BTS e dos imóveis compreendidos por essa modalidade contratual?

Como abordado no início deste artigo, os Contratos BTS são aqueles em que é avençada a “locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado”, e em relação aos quais, “prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo” (Art. 54-A, caput, da Lei de Locações).

Comumente, tais contratos resultam de um sofisticado ajuste comercial entre as partes (empreendedor-locador e locatário), pelo qual se estabelece que o empreendedor-locador compra, constrói e/ou reforma substancialmente determinado imóvel, customizando-o para conferir-lhe características sob medida (bespoke) encomendadas pelo locatário, a quem, por sua vez, normalmente interessa mais locar um imóvel com um grau maior de personalização — esse imóvel deve contemplar características que, no todo, melhor atendam às necessidades do pretendente a ocupante.

Em contrapartida ao investimento do empreendedor-locador e como garantia de seu retorno financeiro, o locatário compromete-se a pagar aqueles aluguéis derivados do contrato BTS por um prazo determinado, sendo este, no mínimo, o necessário para que o empreendedor-locador possa obter o retorno de seus investimentos (ou seja, investimento propriamente dito e lucratividade)[5].

O contrato BTS tem, portanto, a singularidade como característica fundamental: promove-se a criação de um bem novo, especificamente para atender a uma demanda única e específica.

Logo, para essa modalidade de contrato, deve-se considerar apenas o que as partes convencionaram por meio do respectivo instrumento, de modo que, no tocante especificamente ao valor do aluguel, a análise deve se direcionar para dentro do contrato, a fim de entender a complexa rede de interesses (direitos e obrigações) que formam o seu todo, compondo o quebra-cabeças da distribuição de riscos adotada pelas partes.

Pelo caminho de ideias percorrido até aqui, com razoável consistência podemos afirmar que, para qualquer contrato BTS, não importa o que o mercado dita como preço para fins de locação, pois o valor do aluguel, nesses contratos, resulta da combinação de uma série de fatores endógenos próprios de cada um deles, tais como: risco de crédito do locatário analisado no tempo da locação, investimento do empreendedor-locador na aquisição, construção ou reforma substancial do imóvel, custos financeiros relacionados à alavancagem dos investimentos, e respectiva margem de lucro e taxa de retorno pretendidas nesse investimento, entre outros.

Além disso, é sabido que o valor pago pelo locatário ao empreendedor-locador, a título de aluguel, tem dupla função, pois deve não apenas garantir o retorno do investimento do empreendedor-locador, remunerando-o conforme o contrato, como também servir de contraprestação à ocupação do imóvel pelo locatário. Muito se discute se haveria como dissociar uma função da outra ou mesmo distinguir os valores que supostamente caberiam a cada uma delas. A nosso ver, tal dissociação tende a ser impraticável, pois ambos os componentes da parcela paga a título de aluguel em um Contrato BTS fazem parte de um complexo negocial único e indivisível. Essa “separação” seria, portanto, de maior utilidade para fins conceituais, bem como para melhor entendimento da natureza sui generis do contrato BTS.

Assim, para um determinado Contrato BTS, o preço de mercado praticado em qualquer outra relação locatícia (não importando se típica ou atípica) é um elemento exógeno, completamente estranho e irrelevante à relação entre empreendedor-locador e locatário estabelecida por meio daquele contrato. O mercado é, neste caso, insular, pois formado apenas pelo locatário, justamente aquele com quem o empreendedor-locador firmou o contrato BTS. Ninguém mais.

Tem-se, assim, um espaço amostral formado por um único elemento; logo, a comparabilidade de lastros, considerando-se determinado conjunto de elementos, que é comum quando falamos de preço de mercado em relação a contratos de locação típicos, está ausente (não encontra aplicação) nos Contratos BTS. Portanto, para fins de determinação do valor do aluguel, o preço de mercado não é outro senão o preço praticado para aquele, e somente aquele, contrato BTS.

Entendemos, portanto, que é dentro dessa circunscrição semântica restrita que a expressão “preço de mercado” deve ser compreendida quando nos referimos a Contratos BTS. Oportuno lembrar de uma cláusula comum nos Contratos BTS, que serve para afastar qualquer desvirtuamento de compreensão sobre a não aplicação do preço de mercado a essa modalidade de negócio jurídico. Essa cláusula, mutatis mutandis, geralmente tem a seguinte redação: “As partes declaram, neste ato, que o valor do aluguel não foi previsto em função das condições de mercado para locação, não estando, portanto, sujeito, para qualquer fim, ao disposto no art. 19 da Lei do Inquilinato.”

Por contarem com fundamentos econômicos e funcionais muito próprios e particulares, os Contratos BTS são singulares em sua essência. Daí que, para tais contratos, os elementos materiais de formação do valor de aluguel são eminentemente e intrinsecamente endógenos (intracontratuais), não havendo por que se falar, para fins de formação desse valor[6], no conceito de preço de mercado, conceito esse de uso comum e generalizado para contratos de locação típicos.

Ante a radical singularidade dos Contratos BTS, falta-lhes elementos para composição de um espaço amostral, para além daquela relação contratual única e singular entre o empreendedor-locador e o locatário.

*Farley Menezes é Counsel no Cascione Advogados.

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