Reforma Tributária: especialistas apontam questões sensíveis e que podem gerar conflitos
Luciano Teixeira – São Paulo
A promulgação da reforma tributária pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva marca um momento histórico após décadas de debate no Congresso Nacional. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que busca reformular o sistema tributário brasileiro, traz mudanças significativas na cobrança de impostos sobre consumo. No entanto, a sanção veio acompanhada de vetos que geraram polêmica e reacenderam discussões sobre os impactos econômicos e sociais da reforma.
Sancionada por Lula, a reforma tributária estabelece a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que substitui cinco tributos atualmente vigentes: PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS. A promessa do governo é simplificar o sistema, reduzir custos administrativos e combater distorções como a guerra fiscal. No entanto, os vetos presidenciais em itens relacionados à isenção de tributos e incentivos regionais levantaram questionamentos de setores econômicos e políticos.
Entre os vetos mais comentados estão:
- Exclusão de isenção para medicamentos adquiridos por entidades públicas e filantrópicas: O Senado havia incluído essa isenção, mas o governo argumentou que a medida traria impactos significativos na arrecadação e não estava acompanhada de estudos detalhados sobre sua viabilidade.
- Regra de IPVA para aeronaves e embarcações de luxo: Embora a reforma permita a cobrança do imposto por estados, a decisão sobre progressividade do tributo foi limitada, o que pode reduzir sua eficácia em combater desigualdades.
- Desoneração ampliada para dispositivos médicos e produtos de saúde menstrual: O governo preferiu restringir o alcance dessas isenções, apontando possíveis prejuízos à receita tributária.
Pontos Sensíveis e Possíveis Polêmicas
Apesar do avanço da reforma, especialistas destacam pontos que podem gerar desafios práticos e jurídicos.
1. Criação do IVA e alíquota elevada
O IVA dual, dividido entre federal (CBS) e estadual/municipal (IBS), promete simplificar a tributação sobre o consumo. No entanto, a estimativa de alíquota em torno de 25% a 27,5% preocupa empresários e consumidores. Segundo o economista Bernard Appy, secretário especial da Reforma Tributária, o objetivo é manter a carga tributária estável, mas especialistas alertam para o impacto em setores sensíveis, como alimentos e serviços.
“Apesar de – conceitualmente – termos a expectativa de que setores atualmente tributados acima da média teriam uma redução de carga, enquanto setores então beneficiados teriam majoração, as projeções que temos feito em conjunto com nossos clientes mostra que são realmente muito raros os caso de estimativa de redução de carga fiscal efetiva”, avalia Fabio Florentino, sócio da área tributária do Demarest.
2. Guerra fiscal e impacto regional
A cobrança do IVA no destino, e não na origem, visa acabar com a guerra fiscal entre estados. No entanto, regiões que dependem de incentivos fiscais, como a Zona Franca de Manaus, podem ser prejudicadas. Governadores do Norte e Nordeste já demonstraram preocupação com a perda de competitividade industrial. Para os especialistas, alguns mecanismos de compensação para regiões menos desenvolvidas podem evitar o aprofundamento de desigualdades regionais.
“Destaca-se a criação do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais de ICMS, destinado a compensar as empresas pela extinção dos incentivos fiscais que, em muitos casos, justificaram a sua instalação em determinada região. Em segundo plano, está a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, a partir do qual os Estados receberão recursos para aplicação em obras de infraestrutura, para o fomento às atividades produtivas e para a promoção de ações voltadas ao desenvolvimento científico e tecnológico”, explica Victor Hugo Rocha, diretor jurídico do movimento Destrava Brasil,
3. Imposto do Pecado
A criação do Imposto Seletivo sobre itens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros e bebidas alcoólicas, busca desestimular o consumo desses produtos. No entanto, o setor produtivo critica a falta de clareza sobre os critérios de incidência e a possibilidade de aumento de custos para os consumidores.
“Elevar exageradamente a carga tributária sobre determinados produtos pode encorajar a evasão fiscal, resultando em perda de arrecadação e até mesmo em menor controle sobre a qualidade dos itens consumidos, afetando o bem-estar da população”, analisa João Henrique Gasparino, sócio do Grupo Nimbus.
Para o advogado, a falta de clareza nos critérios de incidência do imposto tende a gerar insegurança jurídica para o setor produtivo, que enfrenta dificuldade em planejar custos e repassar preços aos consumidores de forma transparente. “Isso pode acarretar uma elevação generalizada de preços ou até mesmo incentivar o surgimento de alternativas ilegais, sem alcançar os benefícios de saúde pública pretendidos”, diz.
4. Tributação de heranças e patrimônio
A reforma também estabelece a progressividade do ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação), incluindo cobrança sobre heranças no exterior. A medida foi bem recebida por parte da sociedade, mas entidades empresariais temem aumento na complexidade tributária e na fuga de capitais.
De acordo com os tributaristas, a progressividade é um avanço em termos de justiça fiscal, mas sua aplicação precisa ser acompanhada de medidas para evitar evasão por meio de paraísos fiscais.
“É fundamental que a reforma tributária seja acompanhada de uma cooperação internacional mais estreita, bem como do fortalecimento das medidas de transparência e rastreamento de ativos. A implementação de regras claras sobre a declaração de bens no exterior e a adesão a acordos internacionais de troca de informações fiscais são passos essenciais para garantir que a progressividade do ITCMD não seja comprometida pela fuga de capitais”, destaca Ana Beatriz Latronico Xavier, advogada no escritório Marina Dinamarco.
Segundo a especialista, a regulamentação de medidas específicas, como a tributação de ativos no exterior, deve ser robusta e eficaz, para evitar que os contribuintes se utilizem dessas estratégias para burlar o sistema tributário.
Vetos e pressões no Congresso
Os vetos presidenciais já enfrentam pressão de parlamentares, especialmente em relação às isenções negadas. A oposição acusa o governo de não dialogar com o setor produtivo e aponta que algumas decisões podem comprometer a competitividade da economia brasileira.
“Os vetos presidenciais podem gerar contenciosos, especialmente no que diz respeito ao artigo que garantia a não incidência do imposto seletivo nas exportações. Esse veto pode criar um cenário de insegurança jurídica para o setor produtivo, que aguardava essa garantia. Além disso, outro ponto crucial é a governança federativa, que envolve a coordenação entre estados e municípios por meio do Comitê Gestor do IBS, algo fundamental para a eficiência do novo modelo”, destaca Thulio Alves, tributarista do Loeser e Hadad Advogados.
De acordo com o professor de pós-graduação na PUC-MG, o tributarista Gustavo Lanna, do GVM Advogados, a espinha dorsal do PLC foi mantida na nova lei, mas houve alguns vetos importantes. “O primeiro deles em relação à isenção da tributação de fundos de investimentos imobiliários e agropecuários, que vão passar a ser tributados pelo IBS e CBS”, diz.
Lanna afirma que ainda há dúvidas sobre a forma como isso vai acontecer, porque pode haver bitributação (o que é proibido) caso tanto as operadoras como as empresas financeiras que fazem a interface com os investidores forem tributadas.
Para o especialista, outro veto governamental crítico e que poderá ser levado à análise dos tribunais – já que a Constituição prevê imunidade na exportação de minérios — é o que revogou a isenção da exportação desses bens.
No entanto, a base governista defende os vetos como medidas necessárias para evitar desequilíbrios fiscais. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que “os vetos foram estratégicos para garantir que a transição ocorra de forma responsável e sustentável”.
Desafios na implementação
A regulamentação da reforma será um ponto crítico para determinar seu sucesso. O período de transição, que pode se estender até 2033, visa permitir que estados e municípios se adaptem às novas regras. Entretanto, especialistas destacam a importância de um planejamento robusto para evitar insegurança jurídica e conflitos federativos.
Além disso, a necessidade de criar leis complementares para definir detalhes como alíquotas, isenções e mecanismos de cashback exigirá articulação entre Executivo e Legislativo.
A reforma tributária representa um marco histórico na tentativa de modernizar o sistema fiscal brasileiro, mas não está isenta de desafios. A promessa de simplificação e eficiência depende da capacidade de regulamentar e implementar as mudanças sem comprometer a arrecadação ou gerar impactos negativos para setores sensíveis.
“Um dos principais pontos de preocupação está no setor de serviços, que pode enfrentar um aumento da carga tributária, uma vez que a alíquota padrão combinada está estimada em 28%. Embora a proposta traga avanços, como a unificação de tributos, o impacto no setor de serviços ainda é uma grande questão a ser resolvida”, destaca Leticia Micchelucci, sócia da área tributária do Loeser e Hadad Advogados.
Segundo os especialistas da área, a reforma é necessária, mas o sucesso dependerá de um diálogo contínuo entre governo, setor produtivo e sociedade. Será preciso equilibrar eficiência econômica e justiça fiscal para que os benefícios se traduzam em desenvolvimento sustentável.
Enquanto o debate avança, o Brasil aguarda os próximos passos para transformar a promessa de uma reforma tributária em uma realidade prática, justa e eficiente.