Primeiras reflexões sobre o protocolo para julgamento com perspectiva racial

Primeiras reflexões sobre o protocolo para julgamento com perspectiva racial
Danilo Silva Guimarães: "Trata-se de um trabalho complexo e valioso que ataca os impactos do racismo sobre a dignidade da pessoa humana"/Pixabay
Publicado em 11/12/2024 às 11:54

Danilo Silva Guimarães*

Acaba de ser publicado o protocolo para julgamento com perspectiva racial, sistematizado por um grupo de trabalho do Programa Justiça Plural do Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Trata-se de um trabalho complexo e valioso que ataca os impactos do racismo sobre a dignidade da pessoa humana. Enfatiza que o princípio da dignidade supõe que o ser humano não pode ser tomado como meio para a consecução de finalidades alheias. As pessoas devem ser respeitadas quanto às decisões existenciais que afetam a própria vida e podem participar das decisões coletivas que influem no destino da sociedade. Todas as pessoas são merecedoras de igual consideração, respeito e devem ter acesso às condições básicas de alimentação, moradia e saúde.

No protocolo há uma exposição de conceitos, sobre a qual percebi alguns aspectos que merecem maior atenção. Na página 31 do documento encontramos o seguinte conteúdo:

1 – Convencionou-se que as categorias censitárias “pretos” e “pardos” estão compreendidas no grupo “negros”;
2- O grupo de negros é representativo da população afrodescendente;
3 – Afrodescendente são pessoas lidas pela sociedade como pessoas racializadas e que sofrem (ou sofreram) racismo ao longo da vida por terem características fenotípicas africanas;
4 – O Estatuto da Igualdade Racial define a população negra como “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”;
5 – A cor parda – relacionada a pessoas com ascendência negra – não engloba, portanto, a condição dos indígenas.

Primeiro, cabe destacar do que foi publicado no protocolo, que a relação unívoca entre pardos e negros é uma convenção, sua base na realidade é parcial. Segundo, na prática, a leitura social nem sempre é convergente com a autodeclaração. Numa simples avaliação lógica, se negro é afrodescendente (item 2), afrodescendente é quem é lido socialmente como racializado e vítima de racismo (item 3) e negro é quem se autodeclara (item 4), a convergência entre as três as definições é algo a ser construído.

Finalmente, dizer que a cor parda não engloba a condição dos indígenas é apenas parcialmente correto, porque indígena diz respeito à condição étnica e não à cor. Enquanto indígenas podem ser de muitas cores, a cor parda e sua categorização para fins censitários, historicamente, engloba a ascendência indígena conforme o aprofundado estudo do professor João Pacheco de Oliveira, do Museu Nacional (UFRJ), sobre como as categorias pardo, mestiço e caboclo estiveram interligadas na construção dos Censos nacionais no Brasil de 1872 a 1980:

O Censo de 1940 voltou a operar com classificações relativas à raça e/ou etnia, só que agora conceituadas de modo disfarçado e eufemístico através das categorias de “cor”. Os “caboclos” passaram a ser classificados dentro da categoria mais geral de “pardos”, que anteriormente se aplicava aos mestiços de brancos e negros, mas doravante passará a designar todas as modalidades de mestiços.

Adicionalmente, é importante considerar o relevante trabalho de John Manuel Monteiro (1956-2013), especializado em história indígena e professor da Unicamp, que mostra como os indígenas foram classificados como negros para fins de sua escravização desde o século 17, no livro Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, publicado pela Editora Companhia das Letras em 1994:

O próprio termo índio — redefinido no decorrer do século — figura como testemunho deste processo: na documentação da época o termo referia-se tão somente aos integrantes dos aldeamentos da região, reservando-se para a vasta maioria da população indígena a sugestiva denominação de “negros da terra”. (p. 155)

Em suma:

1 – Segundo pesquisa Datafolha, 60% da população parda não se considera negra;
2 – A categoria “pardo” foi usada pela primeira vez para heterodescrição de pessoas indígenas, na Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1500;
3 – Por muito tempo, os indígenas foram excluídos dos Censos nacionais, indicando a impossibilidade da autodeclaração indígena e a posterior racialização das pessoas indígenas no quesito cor;
4 – A categoria “pardo” foi instituída no Censo de 1940 para designar pessoas mestiças de origem indígena e/ou afrodescendente. Não faz sentido que a ascendência indígena tenha magicamente sumido da população parda algumas décadas depois;
5 – A maior parte da população indígena foi heteroclassificada como negra no século 17 para favorecer a expulsão das comunidades de suas terras e a escravização das pessoas, como forma de contornar a proibição da escravização indígena.

Sou plenamente favorável à união de pretos, pardos e indígenas na luta contra as opressões coloniais persistentes. Para que isso aconteça, efetivamente, é necessário que as histórias pessoais, comunitárias e socialmente documentadas sejam respeitadas. Espero que a evidência histórica possa ser enriquecedora de potenciais revisões do protocolo, para que ele possa atingir com maior pertinência seu objetivo orientador da atuação de magistrados e magistradas.

*Danilo Silva Guimarães é professor do Instituto de Psicologia da USP. Texto originalmente publicado no Jornal da USP.

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