Ozempic no SUS: os efeitos da queda de patentes para pacientes e laboratórios

Ozempic no SUS: os efeitos da queda de patentes para pacientes e laboratórios
Na ponta desse processo está a cidade do Rio de Janeiro, que está desenvolvendo um programa para oferecer medicamentos como a semaglutida e a liraglutida na rede pública de saúde a partir de 2026/Divulgação
Publicado em 14/01/2025 às 11:03

Luciano Teixeira – São Paulo

A discussão sobre a quebra de patentes no Brasil ganha relevância com o debate sobre a incorporação de medicamentos como a semaglutida, princípio ativo do Ozempic, no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse uso, previsto na legislação brasileira, é frequentemente adotado para garantir acesso público a medicamentos de alto custo, especialmente em casos de interesse coletivo e emergência de saúde pública.

Embora a prática seja vista como uma estratégia eficaz para democratizar o acesso a tratamentos, ela enfrenta desafios jurídicos, como o equilíbrio entre os direitos de propriedade intelectual de empresas farmacêuticas e a necessidade de garantir saúde e bem-estar à população. Além disso, questões como o impacto econômico para os laboratórios, as exigências regulatórias e a implementação de políticas públicas eficientes estão no centro desse debate.

Na ponta desse processo está a cidade do Rio de Janeiro, que está desenvolvendo um programa para oferecer medicamentos como a semaglutida e a liraglutida na rede pública de saúde a partir de 2026. Esses medicamentos, originalmente indicados para o controle da diabetes, ganharam destaque pelo efeito na perda de peso e são vistos como um avanço no combate à obesidade.

O plano inclui o fornecimento de cerca de 3 mil doses mensais nas clínicas da família, como parte de um tratamento integrado que também prevê dieta, exercícios e possíveis intervenções cirúrgicas. Segundo o secretário municipal de saúde, Daniel Soranz, a medida pode representar economia para os cofres públicos. “O Rio de Janeiro gasta cerca de R$ 130 milhões anuais com internações relacionadas a diabetes e obesidade. Reduzir essas internações é um dos objetivos desse programa”, afirma.

Questões regulatórias e implicações jurídicas da inclusão de Ozempic no SUS

A possível inclusão da semaglutida, princípio ativo do medicamento Ozempic, no Sistema Único de Saúde (SUS) envolve desafios regulatórios e jurídicos que vão além da simples queda de patente prevista para 2026, segundo especialistas consultados por LexLegal. A legislação brasileira prevê mecanismos para ampliar o acesso a medicamentos essenciais, mas isso deve ser feito com cautela, respeitando tanto o direito à saúde quanto a proteção da propriedade intelectual.

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A queda da patente de medicamentos como a semaglutida ocorre automaticamente ao término do prazo de 20 anos de proteção, conforme estabelecido pela Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96). A partir de março de 2026, outras empresas poderão produzir versões genéricas do medicamento sem a necessidade de consentimento da Novo Nordisk, detentora da patente original.

Contudo, em situações de emergência nacional, calamidade pública ou interesse público, o Brasil pode recorrer ao licenciamento compulsório. Esse mecanismo, previsto no artigo 71 da mesma lei, permite que terceiros produzam o medicamento durante o período de vigência da patente, mediante justa compensação ao titular.

“O licenciamento compulsório não é quebra de patente, mas um instrumento legal para atender demandas urgentes de saúde pública, como já ocorreu no passado com medicamentos para HIV e hepatite C”, explica José Roberto Almeida, especialista em propriedade intelectual e sócio do BBL Advogados.

A adoção do licenciamento compulsório traz benefícios claros para a saúde pública, como o aumento do acesso e a redução de custos, mas também implica desafios financeiros e reputacionais para os laboratórios. “A exclusividade é uma recompensa pelos altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e a perda dessa proteção pode impactar futuras inovações”, alerta Raquel Gaspar, advogada especialista em marcas e patentes da RVF Advogados.

“Antes de se falar em licenciamento compulsório, medida extremíssima e aplicada uma única vez no Brasil em 2007, é importante lembrar que há a possibilidade de licenciamento voluntário pelo titular da patente e que é possível estabelecer um diálogo profícuo com os titulares para que sejam estabelecidas parcerias com o poder público. Não é só uma questão de expropriação de propriedade. Há outras questões envolvidas, como a própria capacidade produtiva, know-how e disponibilidade de matéria prima”, afirma Viviane Trojan, advogada e sócia do escritório Kasznar Leonardos, especialista na área de contencioso de patentes.

Para a advogada, qualquer tentativa de expropriar direitos de propriedade industrial maculará a percepção do Brasil como um ambiente favorável ao desenvolvimento de novas soluções na área da saúde. “É provável que haja um êxodo ainda maior de investimentos em medicamentos inovadores no Brasil por empresas estrangeiras. Não há como negar que medicamentos pioneiros e mais avançados no tratamento e prevenção de inúmeras doenças genéticas, por exemplo, foram desenvolvidos por farmacêuticas estrangeiras. Fechar os olhos para essa realidade pode, inclusive, dificultar o acesso à saúde no Brasil – e não o contrário”, avalia Trojan.

Por outro lado, a produção de genéricos tende a gerar maior concorrência e redução de preços. Isso cria um cenário mais favorável para a aquisição em larga escala pelo SUS, facilitando a inclusão do medicamento em políticas públicas de combate à obesidade e diabetes. “A semaglutida tem o potencial de reduzir significativamente complicações associadas a essas condições, gerando economia em internações e tratamentos de longo prazo”, destaca Henderson Fürst, advogado de Direito à Saúde.

Para garantir o uso criterioso do medicamento na rede pública, será essencial a definição de protocolos clínicos que priorizem pacientes mais necessitados e em risco de complicações graves. “É fundamental evitar o desperdício e o uso inadequado. Protocolos baseados em evidências e monitoramento contínuo são indispensáveis para assegurar a eficiência do programa”, acrescenta Almeida.

Além disso, a educação de profissionais de saúde e o acompanhamento rigoroso dos pacientes são estratégias que podem maximizar os benefícios do medicamento e prevenir efeitos adversos ou mau uso.

Enquanto a discussão sobre a semaglutida avança, é importante considerar alternativas já disponíveis no mercado. Medicamentos como a liraglutida, cuja patente expirou, têm eficácia comprovada no tratamento da obesidade e podem atender uma parcela significativa da população com menor custo inicial para o sistema público.

“A decisão de priorizar medicamentos deve sempre levar em conta evidências científicas e o impacto no orçamento público. É uma questão de alinhar saúde e sustentabilidade”, conclui Gaspar.

Adoção e custos: benefícios para o SUS

Em 2023, a Novo Nordisk solicitou a inclusão da semaglutida na lista de medicamentos do SUS, mas o pedido foi negado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). O principal obstáculo foi o impacto orçamentário estimado em R$ 12,6 bilhões em cinco anos. A aprovação dependerá de negociações que equilibrem custos e benefícios.

Karen de Marca, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, argumenta que os benefícios podem compensar os custos. “Além de promover uma perda de peso significativa, esses medicamentos têm demonstrado reduzir a mortalidade por doenças cardiovasculares, principal causa de óbitos entre diabéticos e obesos”, explica.

Ela também enfatiza que os medicamentos devem ser usados de forma criteriosa, com protocolos que garantam o tratamento dos pacientes mais necessitados. “Essas medicações são indicadas para pacientes com obesidade severa e comorbidades. Sem esses critérios, os custos podem ultrapassar os benefícios esperados.”

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Outro desafio está no uso estético e indiscriminado dos medicamentos. Embora sejam indicados para condições médicas específicas, muitos pacientes utilizam semaglutida e liraglutida para perda de peso sem supervisão médica, o que pode gerar riscos à saúde e à segurança do tratamento. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) avalia a possibilidade de incluir esses medicamentos na categoria de venda controlada, com retenção da receita médica.

De acordo com uma carta aberta de entidades médicas, como a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, “o uso indiscriminado desses medicamentos compromete o acesso dos pacientes que realmente necessitam do tratamento.”

Impactos na saúde pública

A inclusão da semaglutida e da liraglutida no SUS também tem potencial de gerar impacto significativo na saúde pública. O secretário Daniel Soranz ressalta que a obesidade é um problema estrutural. “É importante tratar obesidade não apenas como uma questão estética, mas como um problema de saúde pública que afeta taxas de diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares.”

A endocrinologista Karen de Marca acrescenta que o acompanhamento multidisciplinar será essencial para garantir a eficácia do programa. “A obesidade é multifatorial e exige um tratamento que inclua educadores físicos, psicólogos, nutricionistas e outros profissionais. Apenas a medicação não resolve as causas subjacentes do ganho de peso.”

A perspectiva de queda na patente da semaglutida e a redução de preços devido à concorrência podem viabilizar sua inclusão no SUS em larga escala. Contudo, o sucesso dessa estratégia dependerá de ações coordenadas entre governos, empresas farmacêuticas e profissionais de saúde.

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A experiência de programas em estados como Goiás, Espírito Santo e no Distrito Federal, que já utilizam liraglutida, oferece lições importantes para a implementação no Rio de Janeiro. Esses estados têm mostrado que, com protocolos bem definidos, é possível equilibrar custos e ampliar o acesso a tratamentos de alta eficácia.

O debate sobre a inclusão de medicamentos inovadores no SUS reflete um dilema ético e jurídico: equilibrar os direitos de propriedade intelectual com a garantia do acesso universal à saúde, prevista na Constituição Federal. Embora a proteção de patentes seja crucial para estimular a inovação, a saúde pública demanda medidas que assegurem a equidade e a inclusão.

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