O pensamento como exigência didática no ensino do Direito

O pensamento como exigência didática no ensino do Direito
O pensamento crítico, assim, é uma característica essencial a quem atua no campo jurídico, tratando-se de característica que demanda desenvolvimento/Pixabay
Publicado em 04/11/2024 às 13:08

Arthur Felipe Martins* 

Se há uma crítica que ouvimos de pensadores jurídicos ao acessar núcleos mais avançados de estudo, é que as faculdades de Direito ensinam aos alunos leis, mas não os ensinam a pensar.

É fato que o mercado exige, de imediato, que o operador do Direito domine normas e saídas para os problemas jurídicos mais comuns. Entretanto, a crítica feita acima está correta: o operador do Direito, por operar uma ciência humana, precisa ser um pensador, enxergando além da norma.

No ensino do Direito, não basta ensinar ao aluno leis e normas. A formação de um jurista exige o desenvolvimento de um raciocínio crítico e reflexivo, que vai muito além da aplicação mecânica de leis e conceitos.

O Direito é, indiscutivelmente, um campo de argumentações, como ensina Robert Alexy. Para ser capaz de argumentar, o operador do Direito precisa dominar os princípios fundamentais, eis que estes se sobrepõem a qualquer outro dispositivo legal: inteligente é o advogado que, desde a sua primeira manifestação em um processo, já invoca princípios para fomentar sua discussão até as instâncias extraordinárias.

O pensamento crítico, assim, é uma característica essencial a quem atua no campo jurídico, tratando-se de característica que demanda desenvolvimento.

Para falar do ensino do Direito, é preciso falar sobre os métodos cabíveis a tal espécie de docência.

A hermenêutica jurídica é o ramo da Teoria Geral do Direito que estuda os métodos e princípios da interpretação de normas jurídicas. A sua finalidade é fornecer bases para a interpretação da norma: trata-se de método de suma importância, visto que permite ao operador do Direito enxergar, na norma jurídica, além do que está escrito, visando encontrar o real objetivo daquele dispositivo.

Isso é essencial para a solução de conflitos porque nenhuma lei seria capaz de prever todas as situações passíveis de configuração em uma sociedade: enxergar a verdadeira intenção do legislador, assim, é ter uma chance de aplicar dispositivo similar ao caso concreto.

Em tratando-se do ensino jurídico, podemos referir as lições de Friedrich Müller, jurista alemão que leciona na Universidade de Heidelberg. Segundo ele, o texto legal é somente uma parte da interpretação do comando normativo: o restante do significado da lei só pode ser conhecido mediante sua interpretação, considerando inclusive o contexto social, histórico e moral em que se encontram inseridas.

O aluno de Direito precisa, desde o início de sua jornada, ser incentivado a desenvolver essa capacidade hermenêutica, de enxergar “além da norma”. Do contrário, o Direito em si para no tempo, eis que deixa de ser algo vivo e em constante evolução para se tornar unicamente uma letra fria.

A partir do momento em que o aluno consegue enxergar na norma mais do que um punhado de letras reunidas, passa também a ser capaz de raciocinar, entender e criticar o texto legal. Neste sentido, Dworkin sempre argumentou que o raciocínio legal não deveria se limitar a analisar normas jurídicas, mas ser acompanhado de contínua reflexão sobre a justiça a ser promovida pela sua aplicação.

Essa constante reflexão, que resulta em verdadeiro pensamento crítico, permite que o futuro jurista vá além da letra da Lei, buscando soluções justas que atendam melhor às demandas da sociedade, através da aplicação de princípios e aplicação de equidade em seus próprios julgamentos.

Tal sorte de raciocínio está muito presente nas decisões das cortes superiores: a aplicação de princípios constitucionais, muitas vezes, “passa por cima” de textos legais expressos, além de ser frequentemente necessário fazer a ponderação entre princípios constitucionais conflitantes entre si.

Trata-se, em verdade, da aplicação de outro basilar: o Princípio da Supremacia da Constituição, que consagra a prevalência do texto constitucional – onde estão, não por acaso, os princípios fundamentais – sobre todos os demais dispositivos legais. Segundo este princípio, todo o ordenamento jurídico deve ser interpretado a partir dos valores inscritos na Constituição e isso certamente não seria possível sem a capacidade de pensamento crítico no Direito.

Nas palavras de Nelson Nery Júnior:

“O intérprete deve buscar a aplicação do Direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema.” (G.N.)

Ao dizer que a legislação infraconstitucional deva ser consultada depois, Nelson Nery deixa claro que o intérprete deverá avaliar criticamente a norma alvo do estudo, recorrendo-se de princípios quando a lei não atender à finalidade do Direito. Neste sentido, a lição de Luiz Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

“É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma constitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta).” (G.N.)

Na sala de aula, o professor de Direito tem participação crucial no trabalho da capacidade de raciocínio crítico de cada um de seus alunos. O papel do professor vai muito além de recitar leis e súmulas. Este hábito, que infelizmente ainda é presenciado em diversas instituições de ensino, aproxima-se daquilo que Paulo Freire chamava de educação bancária, que traz prejuízos não somente aos educados, mas também ao educador:

“(…) a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante.

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.” (G.N.)

Através de pesquisa e observação, o docente precisa instigar seus alunos a avaliar as bases do Direito, capacitando-os a questionar sua aplicação em situações que fujam ao ordinário. Assim, desenvolvem pensamento crítico e tornam-se bons operadores do Direito. Tanto os alunos quanto o professor, vale citar.

*Arthur Felipe Martins é advogado, especialista em Direito e Processo do Trabalho e Direito acidentário. 

SÃO PAULO WEATHER
Newsletter
Cadastre seu email e receba notícias, acontecimentos e eventos em primeira mão.