Fundo “Endowment”: qual futuro queremos?
Uma alternativa interessante para estimular as pessoas a pensar no longo prazo consiste em abstrair temas mencionando o que queremos para nossos netos. É uma forma de sair de um momento próximo e colocar o tema numa dimensão afetiva e com alguma coisa que se relacione com compromisso. Muito comum ouvir: deixar algo para os netos. É uma forma de lançar para o longo prazo, mesmo que eles, os tais netos, já estejam por aí. Passa uma noção de continuidade, perenidade e mesmo compromisso.
Inúmeros problemas que defrontamos nas relações com a sociedade demandam soluções que exigem visão e operacionalização de longo prazo. Dentre eles destaco o financiamento para as instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão. Num país em que as oscilações da economia, por razões internas e externas, aparecem com frequência, é muito difícil deixar de priorizar apenas os resultados de curto prazo, até porque a lógica do que significa longo prazo não se mostra homogênea para os vários interlocutores. Pelo risco e falta de confiança somos pressionados a pensar quase que exclusivamente nos resultados de curto prazo. As atividades de ensino, pesquisa e extensão de qualidade não aguentam isso.
Aliado à perspectiva da reforma tributária, a sua operacionalização no futuro, no seu longo prazo, devemos pensar, discutir, propor e monitorar alternativas de financiamento que se constituem em necessidade vital para as instituições e, como consequência, de impacto para a sociedade.
Quando se observa o ambiente interno das nossas instituições públicas, a estabilidade de financiamento indica a possibilidade de prosseguir com o desenvolvimento de pesquisas, aperfeiçoamento e continuidade dos projetos de ensino e ações de extensão, cujos resultados não são percebidos facilmente no curto prazo. A pandemia mostrou em diversos aspectos que investir em pesquisa nos permitiu ter respostas melhores e mais rápidas para a vida das pessoas. Sem as instituições de ensino, pesquisa e extensão isso não teria ocorrido. A competitividade de um país passa pelo investimento nas pessoas, nas várias etapas da vida e seu desenvolvimento, o que parece ser consenso, mas não a operacionalização perene.
No que se refere às instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão, muito se perde pela não continuidade do financiamento, inclusive no que se refere a talentos humanos que, depois de investimentos no seu desenvolvimento, optam por atuar em entidades fora do Brasil pela não clareza de perspectivas locais. Alguns problemas são visíveis apenas quando atingem dimensões crônicas e aí pode ser mais caro, nos vários sentidos. No ambiente competitivo em que vivemos, é enorme a responsabilidade de apoiar o desenvolvimento das gerações que chegam para disputar espaços numa escala global de proliferação de conhecimento.
Assim surge o Fundo Endowment, mecanismo que nasceu nas universidades americanas, séculos atrás, e que se constituem em forma de apoio ao crescimento e desenvolvimento de várias instituições muito valorizadas pelo ambiente acadêmico: Harvard, Yale e Columbia, dentre outras. O que elas têm em comum? Bilhões de dólares acumulados ao longo do tempo e que financiam parte relevante das atividades, com modelo de governança que abarca as necessidades das instituições numa visão de longo prazo na captação e aplicação de recursos.
Não se pretende pensar e propor o Fundo Endowment como substituto do financiamento público proporcionado pelo governo, mas como uma maneira de depender menos de uma única fonte de financiamento, que pode ser alterada ao sabor dos ciclos econômicos, mudanças de prioridades e das visões dos governantes e gestores legislativos.
O Fundo Endowment tem uma trava de cautela importante que é a regra do uso exclusivo dos rendimentos auferidos para aplicações. Com isso pode aplicar anualmente em projetos, no máximo, o valor fruto do ganho auferido até um dado momento e preservar o que chamamos de principal, que é o recurso doado corrigido. Portanto, uma gestão competente dos recursos aportados no fundo, na dosagem de risco e retorno, proporciona ao endowment a otimização do sucesso no apoio a projetos, gerando confiança na disponibilidade dos recursos no longo prazo.
Inegável o sucesso do modelo, pois os vários beneficiários envolvidos, como professores, alunos, pesquisadores, governo, enfim, a comunidade na extensão do que pode ser entendido, se beneficiam e têm uma percepção de continuidade das atividades das operações. O sucesso passado alimenta a expectativa de sucesso futuro e o longo prazo é alimentado com o fator confiança na competência e governança, vitais para a manutenção do sistema.
Aprendemos pelas décadas de desenvolvimento da globalização, revolução nos mecanismos de comunicação, dentre outras mudanças, que devemos olhar o que acontece no mundo e identificar, analisar e implementar soluções que deram certo em outros lugares, com a devida adaptação demandada pelo ambiente brasileiro, tanto na perspectiva cultural como na econômica e na jurídica.
Olhando dessa forma, percebemos universidades sul-americanas que angariaram muito mais do que as suas congêneres brasileiras: Universidad Javeriana e Universidad de Los Andes, da Colômbia, com mais de R$ 1,0 bilhão e R$ 700 milhões, respectivamente. Esses dois Endowments, com dados de 2023, são maiores do que a soma dos 20 maiores fundos brasileiros ligados exclusivamente às universidades. A PUC do Chile, com cerca de R$ 200 milhões, complementa a comparação com volume de recursos captados, enquanto no Brasil eles são muito mais modestos, embora o potencial e porte do ambiente permitam pensar em perspectivas muito mais ambiciosas. Muito se argumenta que a cultura da doação no Brasil ainda é nova, mas será que é a única razão?
Relevante mencionar a pesquisa comunicada pelo anuário do IDIS, que mostra que existem 117 Fundos Endowment no Brasil somando R$ 157 bilhões, o que é muito relevante na perspectiva de entender que a cultura da filantropia existe. Contudo, nesse conjunto existem fundos voltados para outros segmentos que não o das universidades, ainda que educação em termos gerais é o que é mais contemplado. Fica clara a concentração em algumas instituições e que a questão da cultura da filantropia existe e é organizada de acordo com as preferências dos filantropos, preponderantemente fora dos fundos das universidades.
Temos uma lei que disciplina essas atividades, a Lei 13.800, de 2019, que definiu a forma dos Fundos Endowment, mas não trouxe os benefícios fiscais para os filantropos, diferencial importante quando se pensa nas alternativas de alocação de recursos. Falta de liderança política, prioridades ideológicas, entendimento de que o momento não era o mais adequado poderiam ser motivos para essa lacuna, mas o fato é que falta um importante quesito que sensibiliza enormemente o ambiente de doações. Nisso o nosso ambiente mimético deixou a desejar.
Muito importante entender e viabilizar a participação dos filantropos. Eles não têm obrigação alguma de apoiar instituições e projetos, devem ser entendidos como aliados e devem ser muito bem-vindos. Não são homogêneos. Podem se apresentar como pessoa física ou jurídica, magnitude de recursos a serem doados, à continuidade ou doação episódica, quanto a motivações ou mesmo preferências de atrativos. Quanto a esse último quesito, de uma forma extremamente simplificada, podem ser segmentados em aqueles que são mais sensíveis às causas e aqueles que são mais sensíveis às instituições. A rigor, essa separação existe mais para entendimento do que motiva uma pessoa, uma família ou uma organização a colocar dinheiro numa instituição, já que existem inúmeras alternativas meritórias que demandam recursos para curto ou curtíssimo prazo.
Um filantropo que se sensibilize pela instituição quer saber quais são as causas que a instituição a ser beneficiada e o beneficiado final pela doação representam. Quer saber se o planejado ocorreu como foi aprovado, o que é parte da transparência e accountability relacionados à governança. Pode estar convencido que pode fazer parte do sucesso de um projeto ou de uma instituição que fará a diferença no futuro. Essa interação é muito importante. Em termos gerais, os filantropos levam em conta a imagem passada e futura das instituições, o que relaciona dimensões diferentes de percepções objetivas mas também afetivas, muitas vezes relacionadas à retribuição pelo que recebeu para si ou para o grupo de interesse, mesmo que indiretamente. Em síntese, a relação entre interlocutores demanda aprendizado e desejo de convívio, que podem se materializar de maneira muito proativa com visão de longo prazo.
A dosagem entre aplicações em projetos assistencialistas e projetos de desenvolvimento que teriam dificuldades de serem realizadas é algo que as universidades direcionam a partir dos trustees, que são conselhos que filtram e adequam as necessidades das instituições e a visão dos filantropos. Nos momentos de tragédias e situações muito críticas, o assistencialismo cresce na ordem das prioridades, mas o direcionamento para o diferencial qualitativo se mostra muito forte numa visão de normalidade. A estrutura de governança com conselhos de administração, conselho fiscal, comitês de projetos, comitês de investimentos e auditoria externa proporciona direcionamento para diretorias executivas desenvolverem ações regradas por estatutos e contidas nos planos estratégicos e orçamentos.
No Brasil encontramos os chamados conselhos de administração também denominados conselhos curadores, com membros que representam tanto a instituição como os filantropos zelando para que os recursos sejam gerenciados e aplicados de maneira adequada e equilibrada. Adicionalmente à lógica básica do endowment, os fundos inovaram criando subfundos com objetivos específicos, o que permite flexibilidade e acomoda diferentes olhares e desejos dos filantropos e necessidades das instituições. A formatação da estrutura de poder na convivência com os vários interlocutores, atenta ao ambiente e com muita preocupação com o longo prazo, é um dos pilares para o convívio produtivo.
Os Fundos Endowment precisam de um corpo jurídico e as instituições públicas, ao se manifestarem a favor do modelo de fundação, direcionam sua visão não apenas para a perspectiva de governança dos filantropos, mas sim para a sociedade. Trata-se de um modelo com regramento forte e amplo que, às vezes, pode parecer restritivo, mas que proporciona uma visão de longo prazo com melhor capacidade de serem monitorados pelos vários interlocutores. Dentre eles, inclusive o Ministério Público e o Tribunal de Contas, que existem para defender o interesse público. Com isso, além da excelência de gestão, os filantropos, a instituição e a sociedade como um todo passam a ter uma perspectiva de perenidade maior do que outros formatos jurídicos, que, embora mais flexíveis, têm maior risco de continuidade e de manutenção dos seus propósitos, pela visão de governança limitada à ótica dos filantropos, por exemplo. No longo prazo a confiança no sistema, pelo conjunto dos interlocutores, deve ser maior com o formato jurídico de fundação.
A instituição beneficiada tem um papel fundamental para o sucesso do Fundo Endowment, pois ela deve ter a competência de identificar e tornar transparente as finalidades meritórias dos recursos necessários para manter os vários perfis de filantropos confortáveis quanto à destinação eficiente de gastos, prestação de contas e forte conexão com os interlocutores, quer sejam os filantropos, como também os reguladores.
Uma coisa que salta aos olhos nos casos de sucesso do Fundo Endowment nas instituições é a não fragmentação do mesmo em subunidades administrativas. Harvard, Yale e Columbia, por exemplo, não têm vários Fundos Endowment, mas um único, que atende toda a universidade. Embora seja muito atraente que cada faculdade dentro de uma universidade tenha o seu próprio fundo, isso dispersa e divide o ambiente dos filantropos, os recursos captados e, consequentemente, as receitas geradas e aplicáveis. Os fundos passam a disputar os filantropos, o que fragiliza o potencial de recursos. Além disso a proliferação gera custos administrativos desnecessários e que poderiam ser utilizados na aplicação de causas de interesse amplo. Por fim, seria de se pensar que recursos com maior magnitude podem obter melhores condições de aplicação no mercado financeiro.
Entendemos que o Fundo Endowment é uma das boas soluções de problemas de financiamento para as instituições educacionais públicas do Brasil e temos um longo caminho. As trajetórias de Harvard e Yale começaram no século 18. Frequentemente ouvimos de diversas fontes a afirmação de que o desenvolvimento democrático e consistente do país passa pela educação, nos vários níveis, de forma consistente e de longo prazo. Ou ajustamos hoje elementos que estão no nosso controle relativo e trabalhamos, principalmente, para mudar os elementos que não dependem unicamente de um dado interlocutor, ou nossos netos reclamarão da nossa inação. No final alguém paga a conta. Sempre.
*Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP. Texto publicado originalmente no Jornal da USP.