Ainda estou aqui. Cinema com história
Janice Theodoro da Silva*
Um pai, uma mãe, uma casa iluminada.
Intenso movimento da câmera, ação na praia, jogo de bola, crianças, alegria entre familiares e amigos. Notícias na TV sugerem tensão. A história do Brasil entra em cena.
O filme conta a história de Eunice Paiva e de seus cinco filhos, Vera, Eliana, Ana Lucia, Marcelo e Maria Beatriz. Ela, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, preso, torturado, desaparecido durante a ditadura brasileira (1964-1988).
A tragédia narrada no filme focaliza a angustia vivida pela família e amigos.
Após a prisão do marido Rubens, as cortinas são fechadas pelos policiais. A sombra prevalece. Em clima de nervosismo, Eunice e sua filha são conduzidas para o interrogatório. Encapuzadas e ao som de gritos, Eunice pergunta: Onde está a minha filha? Quero falar com o meu marido!
Sem resposta, o vazio domina a cena. Conter as emoções é a marca do filme.
A plateia chora.
Atores
É difícil representar virtudes marcadas pelo equilíbrio. Não produzem likes na internet. A coragem exige temperança, senso de justiça e controle da razão. Emoções em baixa na atualidade.
Conduta estoica é palavra fora de moda. O que significa? Os gregos descreviam assim a disposição de exercer o bem e evitar o mal, já em falta naquela época, na Antiguidade.
O trabalho, do diretor Walter Salles e dos atores no filme, Ainda estou aqui conta um pedaço trágico da história do Brasil. A violência é tratada sem lágrimas, sem excesso de emoções. O filme coloca em cena um olhar altivo, a alegria e a perseverança da personagem central, Eunice, representada por Fernanda Torres. Um desafio cinematográfico. A justa medida das emoções é caracterizada pela cena em que um repórter fotográfico pede tristeza para compor uma matéria sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Walter Salles dirige o inverso, a força da virtude da coragem, e não a do excesso de barbárie. O fato narrado é verídico.
Formada em Letras, Eunice não cai na arapuca de uma revista em busca de emoções manipuladas ao gosto do mercado, tema atual nas redes. Desobedecendo às demandas do fotografo, ela sugere alegria em família. Trabalho primoroso de Fernanda Torres mantendo a dignidade como marca da personagem. Virtude expressa em cada músculo da face, no olhar, nos gestos disciplinados de moça educada nas Letras e na Literatura.
Racionalizar as emoções não é fácil, nem na vida nem na tela do cinema. Exige esforço, reflexão diante do problema, ânimo para cursar Direito, trabalhar e transformar a falta de Rubens em luta pelos direitos humanos, sem esquecer da própria vida.
Força e constância, na justa medida, como objeto cinematográfico, exige sutilezas na filmagem.
Fatos históricos verdadeiros são apresentados em sequência cronológica, sem perder ritmo e tensão. Com o desaparecimento do pai, o trabalho primoroso do ator Selton Mello deixa marcas na memória, alegria de Rubens e confiança em si mesmo. A mãe ocupa o protagonismo no filme depois da morte do marido, ingrediente central do livro de Marcelo Paiva, inspiração do filme. Com as rédeas na mão, a interpretação de Fernanda Torres garante equilíbrio entre as emoções da vida pessoal e da vida política. Não falta potência em cena, velha virtude que faz a personagem tocar a vida para frente, sem lágrimas.
O cachorro atropelado é única cena de explosão de raiva. Cólera justa. Rapidamente a protagonista assume as rédeas da situação: um cobertor para enterrar o animal e finalizar mais uma maldade humana. Todos, com as mãos na terra, abrem juntos a cova. Prevalece o domínio da razão, com um morto-cachorro, afetuosamente colocado em seu túmulo.
A notícia da morte de Rubens, fim das esperanças, é intercalada pela presença da filha com uma boneca quebrada pelo irmão. Conflitos familiares, afetos cotidianos em meio ao terror de Estado. Tudo junto na cena.
Eunice, em difícil circunstância, põe em prática a razão, consertar a boneca sem perna.
É possível consertar?
A boneca, o Estado, a natureza humana….
O vazio é a constante.
Filhos no carro e uma pergunta: Mãe, você está bem? A falta do pai em uma pergunta para a mãe dirigindo. A cena transcorre em ambiente automotivo, trivial, exemplo da parceria entre os atores em cena e o receptor da mensagem, o público. Continuar guiando, quando a vontade é negar a realidade, não ver. Prevalece a razão, continuar administrando, as crianças, o carro, a vida, dirigindo.
Perguntas sem respostas expressam a violência estrutural do Estado autoritário brasileiro. Só os torturadores sabem o que de fato aconteceu ao longo dos dias 20, 21 e 22 de janeiro de 1971. O Estado mente, domina, esconde, patrocina o terror, fora das normas legais ainda em vigor na época.
O ritmo do filme guarda continuidade na narrativa, com tensão e razão na medida certa: desaparecimentos, mortes, luta pelos direitos humanos, direitos indígenas, contra o garimpo ilegal. Tempo dilatado. Eunice, em ritmo acelerado, segue em frente, sem esquecer dele, Rubens, e dela, Eunice. Ciente da história do Brasil, do golpe de 1964, do que é terrorismo de Estado, experimentado nos detalhes, por ela e sua família, na prisão e no cotidiano, ausências e faltas, tudo administrado pela razão.
A qualidade da interpretação de Fernanda Torres me lembrou uma foto de Reginaldo Manente, publicada na capa do Jornal da Tarde, na Copa do Mundo de 1982, após a derrota do Brasil. Um menino segurando o choro. O letreiro abaixo da foto no Jornal da Tarde, na primeira página, dizia apenas “Barcelona, 5 de julho de 1982”. O Brasil perdeu por 3X2.
Milhões de brasileiros estavam representados naquela foto. Na emoção contida, a derrota do Brasil.
Milhões de brasileiros também estão representados no filme Ainda estou aqui. Na emoção contida diante das barbaridades de um Estado ditatorial incapaz de garantir direitos básicos à população. Ainda hoje, depois da redemocratização, o Estado brasileiro sofre ameaças.
Cinema é imagem, não se deve esquecer.
Uma história dramática, real, reproduzida no cinema, sem tangenciar o melodrama, exige, na medida certa, equilíbrio entre amor e raiva, razão e prática, indignação e contenção em cada cena. O êxito depende de detalhes, assim como a qualidade do vinho, da cerveja ou do futebol. A história do Brasil carrega tanta violência (da escravidão aos dias de hoje) que é fácil escorregar em direção ao melodrama. O filme ficaria banal, pedagógico.
A falta e a ausência
Walter Salles assume o desafio de fazer ver a falta pessoal de Rubens Paiva e a sua ausência, política, o desaparecimento do ex-deputado.
Falta o corpo do morto. Falta o pai, Rubens, um olhar na lanchonete, família completa na mesa ao lado, uma camisa, ausência dele, a venda do terreno, um sonho, projeto de vida destruído pelo terror do Estado brasileiro.
Acabou.
Não é fácil pôr um ponto final nos desejos.
Assim como Eunice, outras mulheres, diante de imprevistos trágicos, da morte do marido, do pai, da mãe, do filho, da filha, foram obrigadas a encarar, na raça, uma nova vida. Enterrar um ser amado e, junto, os sonhos. É trabalho pesado. As lágrimas diante de um morto são naturais, próprias da condição humana. Segurar em cena o olho apenas molhado, expressar o controle da raiva e monitorar a alegria são detalhes essenciais do filme.
A presença do morto concretiza a perda, faz parte da dor, da sua superação. Já a ausência não tem fim. Palavras ditas no filme. Não há um morto, não há lagrimas, não há atestado de óbito. Terror de Estado transforma cada vítima em instrumento para produzir medo.
A família Paiva usou o antídoto mais forte contra o medo, a falta e a ausência: sorrir, enfrentar a mudança de vida, morar em outras casas e cidades e manter as portas igualmente abertas, alguma coisa do passado, de um mundo sem trancas.
Sem o papel (atestado de óbito) é ainda mais custoso superar a perda, resgatar algum dinheiro no banco, pôr fim às esperanças. Falta de um papel. O Estado ditatorial impõe aos familiares da vítima o vazio. É um Estado que não dá satisfações à sociedade. Prefere esconder a verdade, mentir. Exige domínio das emoções. Assim é. Manter o silencio necessário diante do funcionário do banco, no interrogatório e mesmo diante dos filhos. Todos, família, amigos, companheiros na caminhada política, devem administrar os sentimentos para ir além, calados, salvar a luz restante.
No cinema é porta de entrada a alegoria. Ela materializa o fato. Uma certidão de óbito cumpre o papel.
História é movimento, cinema também. O tempo passa.
Finezas
A fineza do filme, de sua direção, está no escape de qualquer ambição histórico-sociológica. Ela faz imperar no expectador a sua capacidade de sentir o mundo, a falta de liberdade, a ameaça do ressurgimento de movimentos autoritários e ditatoriais.
Walter Salles caracterizou no início do filme uma família aberta, sem muros, em que a presença de amigos era parte de um tipo de amizade, hoje, quase inexistente. Uma amizade sem separação da família, com a vizinhança ou com a rua. Uma amizade na qual a conversa trivial passa pelo companheirismo. Os gregos chamavam este tipo de relação de philia, amizade cívica. Existe na rua, na praia e no Brasil, no futebol. Um viver na polis, da política.
Muita gente, de cabeça aberta, sobreviveu graças a este tipo de amizade. Solidariedade característica de combatentes em tempos de guerra, onde um garante vida do outro, o emprego e, se possível, a alegria de estar junto. Estilo de vida representado, no filme, nas cenas iniciais.
Foi um tipo de companheirismo que levou Rubens Paiva a pensar nos brasileiros, a proteger amigos envolvidos com a situação política do Brasil. Imaginou ser possível escapar da maldade humana e ajudar os amigos. Recebeu cartas, foi preso e morto por causa delas. Queriam dele informações específicas sobre pessoas envolvidas com projetos com os quais poderia concordar com os fins, justiça social, e discordar sobre os meios, a luta armada.
Rubens Paiva não era um radical. Não fechava a porta para os amigos. Se preocupava com eles. Pensava a política brasileira cotidianamente. Foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro em 1962 e cassado pelo Ato Institucional nº 1, em 1964. Fez discurso na Rádio Nacional defendendo a legalidade. Olhando com distância a história, existe continuidade nas políticas golpistas, sarna que ataca o Brasil e vários países da América Latina. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi ameaçado de morte e, recentemente, o presidente, o vice-presidente e um membro do STF.
Restos do passado no presente.
Memória e linguagem
A memória social sofre apagões, especialmente quando afeta a linguagem escrita, tradicionalmente utilizada para a sua manutenção. No passado, a escrita era repositório de memória. Hoje, dependemos sobretudo de imagens e um dispositivo digital para guardá-las. O mundo digital é professor do esquecimento. O TikTok é um exemplo, esquisito e atual, do novo treinamento da percepção para o inútil, uma forma de ocupar o espaço cerebral, anteriormente utilizado pela razão e pelas velhas virtudes. No lugar proliferam os vícios, hoje em alta. Ódio, avareza, sexo, com os detalhes bem visíveis nos processos de Trump e em imagens nas redes.
Sobre violência, tortura e assassinatos, podemos afirmar que algumas pessoas foram mortas pela repressão porque não detinham a informação desejada pelos militares. Outras morreram por manter a boca fechada, e outras, ainda, porque o torturador tinha prazer em matar, mesmo sabendo que não havia mais nada a ser dito. Na tortura não se pensa nada além da dor.
Narrativas heroicas são produções posteriores ao fato.
Entrar na casa de Rubens e Eunice sem ordem judicial, remexer nas gavetas, apoderar-se da casa, em um exercício de poder, olhar os retratos de família, expressar censura diante de capas dos discos são imagens de um tempo em que tudo era proibido: música, jornal, cinema, teatro, alegria. Uma cena do filme para despertar o gosto da liberdade.
Viver em liberdade é sentimento fácil de compreender quando se perde. As vezes tarde demais.
Imagens têm poder de revelar segredos escondidos dentro de nós. Repetir, reelaborar, cuidar, para não consentir, novamente, em mais barbárie.
Neste filme, os brasileiros com coração, do tipo que eu gosto, vão compreender, na postura dos policiais atores, o significado da marcha dos militares, a limpeza do corredor da prisão, a tragédia familiar, a violência naturalizada e a perda da liberdade.
No Estado de Direito, dispor de habeas corpus, registro de prisão e delação premiada, sem tortura, é sorvete para dia de festa (da Selma).
O filme Ainda estou aqui representa um esforço estético e poético, e, nesta medida, político, produzido no ano certo, com a história certa, sobre a família certa, após uma nova tentativa de golpe no Brasil.
Um alarme contra invasões, violência, contra a vida e a democracia.
Acertaram todos os que produziram e atuaram no filme. Acertou Marcelo Paiva por ter escrito a história de sua mãe e da sua família para todo mundo ler e entender melhor que Brasil é este. Uma história humana, com protagonismo feminino, de uma família repleta de mulheres e com um homem atual, o narrador, capaz de compreender com fineza os dilemas da sua mãe e de outras mães representadas no filme. Diferentes tipologias de mães-mulheres e mulheres-mães, personagens secundárias desde a Revolução Industrial, e, agora, em alta, em primeiro plano neste filme e na história atual.
Engenheiros e rapazes em geral, cuidem-se.
Eunice Paiva representa o nascimento de uma nova mulher.
*Janice Theodoro da Silva é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Artigo publicado originalmente no Jornal da USP.