A queda de Bashar al-Assad: o que isso significa para o Brasil e sua conexão histórica com a Síria?

A queda de Bashar al-Assad: o que isso significa para o Brasil e sua conexão histórica com a Síria?
Com a queda do regime de Bashar Al-Assad e as mudanças políticas, o número de refugiados e migrantes pode aumentar/Reprodução
Publicado em 08/12/2024 às 16:54

Luciano Teixeira*

A queda de Bashar al-Assad, ditador sírio que governou o país por mais de 20 anos, marca um momento decisivo para a geopolítica do Oriente Médio e repercute em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. A relação histórica entre os dois países, o impacto humanitário da crise síria e a presença da comunidade sírio-brasileira oferecem um contexto importante para entender como os desdobramentos desse conflito podem afetar o Brasil e suas políticas internas e externas.

As relações entre Brasil e Síria remontam ao final do século XIX, quando os primeiros migrantes sírios chegaram por aqui, fugindo de conflitos e crises econômicas no então Império Otomano. Ao longo das décadas, a comunidade sírio-brasileira cresceu e se consolidou, contribuindo significativamente para a sociedade brasileira, especialmente nos setores de comércio e cultura.

Diplomaticamente, Brasil e Síria sempre mantiveram uma relação respeitosa, com embaixadas em ambos os países e um histórico de cooperação em fóruns internacionais. No entanto, a eclosão da guerra civil síria em 2011, em decorrência da Primavera Árabe na região, exigiu do governo brasileiro uma postura equilibrada diante de uma crise que se tornou cada vez mais polarizada.

No plano doméstico, destacam-se os árabes sunitas, a maioria da população, que se opõe ao regime alauíta de Bashar Al-Assad devido à marginalização histórica; os alauítas, minoria religiosa que domina o poder político e militar; e os curdos, que buscam autonomia no norte do país. Além deles, minorias como cristãos e druzos geralmente apoiam Assad por temerem perseguições sob regimes islâmicos radicais.

Antes da queda, no cenário regional, países como Turquia, Irã, Arábia Saudita e Israel manifestavam interesses estratégicos no conflito. A Turquia, que apoiou os rebeldes que tomaram a capital Damasco neste domingo, tenta conter o avanço curdo, enquanto o Irã apoia Assad para fortalecer o “corredor xiita” na região. Por outro lado, a Arábia Saudita financia grupos sunitas para limitar a influência iraniana, enquanto Israel se concentra em evitar o fortalecimento do Hezbollah e conter a presença iraniana próxima às suas fronteiras. O Líbano, vizinho da Síria, lida com o impacto do conflito, incluindo o fluxo de refugiados e a atuação do Hezbollah ao lado de Assad.

O envolvimento internacional é marcado pela presença de potências como Rússia, Estados Unidos e União Europeia. A Rússia, provável destino do ditador, apoiava Assad para manter sua influência no Oriente Médio e garantir acesso ao Mediterrâneo, enquanto os EUA, embora adversários de Assad, priorizaram o combate ao Estado Islâmico, apoiando curdos e rebeldes moderados. A União Europeia foca principalmente na crise humanitária e no combate ao terrorismo, enquanto países como China defendem o princípio da soberania estatal, apoiando Assad nos fóruns internacionais antes de sua queda.

Além dos países, grupos extremistas como o Estado Islâmico (ISIS, sigla em inglês) e Hayat Tahrir al-Sham (HTS) também desempenharam papéis significativos. O ISIS estabeleceu um “califado” em parte do território sírio, enquanto o HTS, ligado à Al-Qaeda, controla áreas no noroeste. O conflito tem causas várias, incluindo divisões étnicas e religiosas, rivalidades geopolíticas, o impacto da Primavera Árabe e o colapso do estado sírio. A paz na região permanece um objetivo distante devido à complexidade dos interesses em jogo, ainda mais agora com o processo de reconstrução de um novo governo, que precisa de uma coalizão mínima.

A comunidade sírio-brasileira e os refugiados

A Síria ocupa um lugar especial na formação cultural brasileira. Atualmente, estima-se que, por aqui, mais de 3 milhões de pessoas tenham ascendência síria, formando uma das maiores comunidades da diáspora síria no mundo. Essa relação histórica foi reforçada nos últimos anos pela chegada de refugiados sírios fugindo da guerra civil. Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), entre 2011, quando começou o conflito, e 2024 o Brasil recebeu 4.824 refugiados sírios.

Embora o número seja pequeno em comparação com o total de deslocados sírios, que ultrapassam 5 milhões em todo mundo, o Brasil se destacou como um dos poucos países fora do Oriente Médio a implementar políticas relativamente abertas para acolhê-los. Cidades como São Paulo, Curitiba e Foz do Iguaçu têm recebido famílias sírias, que enfrentam desafios para se integrar à sociedade brasileira, como a barreira linguística, dificuldades econômicas e a reconstrução de suas vidas em um ambiente culturalmente distinto.

Essas ondas migratórias, não são novas: começaram no final do século 19 e continuaram ao longo do século 20. Fugindo de crises econômicas e conflitos religiosos no Império Otomano, milhares de sírios encontraram no Brasil refúgio, acolhimento e a chance de começar uma nova vida. Entre 1890 e 1969, cerca de 140 mil sírio-libaneses chegaram ao país, trazendo consigo uma cultura rica e uma capacidade empreendedora que molda diversas áreas, incluindo a política nacional.

Muitos desses migrantes, erroneamente chamados de “turcos” devido à antiga relação com o Império Otomano, começaram como mascates, vendendo mercadorias de porta em porta. A prosperidade no comércio os levou a abrir lojas, especialmente em São Paulo, com destaque para a Rua 25 de Março, que se tornou um dos principais centros comerciais do país. Esse sucesso econômico permitiu que as famílias investissem na educação de seus filhos, preparando-os para ocupações de prestígio, como direito, medicina e engenharia.

A educação, inclusive, foi um dos pilares que facilitaram a inserção dos descendentes de sírio-libaneses na política brasileira. Muitos cursaram universidades de elite, como a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na USP. Esse caminho acadêmico era visto como essencial para legitimar a ascensão social e garantir maior aceitação pela elite brasileira. Michel Temer, Fernando Haddad e outros sobrenomes políticos de destaque como Tebet, Maluf e Boulos seguiram essa trajetória, conectando suas origens migrantes a carreiras políticas influentes. Embora esses políticos compartilhem origens semelhantes, suas ideologias e trajetórias são diversas, o que mostra a pluralidade dessa comunidade.

No interior do Brasil, o sucesso comercial dos patrícios também teve um impacto direto na política. Donos de lojas se tornaram figuras conhecidas em suas comunidades, o que facilitou a transição para a política local. Essa base popular frequentemente serviu e serve como trampolim para cargos maiores, como mandatos estaduais e federais. 

O Papel da cultura na conexão Brasil-Síria

A telenovela Órfãos da Terra, exibida pela TV Globo em 2019, trouxe visibilidade para a história e os desafios dos migrantes sírios e de outras nacionalidades no Brasil. A trama abordou questões como a busca por um novo lar, as dificuldades de integração e os laços familiares. A trama trouxe para o público questões como xenofobia, deslocamento forçado e a luta por reconstrução em meio ao trauma. A obra de 154 capítulos ajudou a sensibilizar a opinião pública sobre a situação dos refugiados, além de reforçar o elo cultural entre os dois países.

Com uma narrativa profundamente ligada à realidade dos refugiados, a produção desempenhou um papel central ao trazer para a audiência brasileira uma perspectiva humanizada sobre o deslocamento forçado, as tensões culturais e os desafios da integração.

A trama também abordou temas como xenofobia, identidade brasileira e síria, alteridade, acolhimento, o papel da mulher nas sociedades síria e brasileira e a luta pela dignidade em um cenário global marcado pela intolerância e pelo aumento dos deslocamentos forçados.

Assim, a telenovela contribuiu para aumentar a compreensão do público sobre a experiência dos refugiados e migrantes, conectando o passado histórico dos sírios com os desafios contemporâneos de outras comunidades em situação semelhante.

A representação dos refugiados destacou a jornada de Laila (Julia Dalavia), uma jovem síria que foge de sua terra natal devastada pela guerra e busca refúgio no Brasil. A narrativa explorou ainda as dificuldades de adaptação em um novo país, as barreiras culturais, linguísticas e os traumas de um passado marcado pela violência do conflito. 

A produção colocou em evidência a pluralidade da comunidade refugiada, incluindo personagens de várias nacionalidades: além dos sírios, palestinos, judeus, congoleses e haitianos (que entram com visto humanitário por aqui, apesar de ter uma história parecida com outras pessoas em condição de refúgio). Isso refletiu a realidade do Brasil como um destino para migrantes forçados, além da riqueza cultural que essas comunidades podem trazer e os desafios que enfrentam.

A relevância de Órfãos da Terra transcendeu a narrativa popular e foi objeto de análise acadêmica, como destacado em nossa tese de doutorado: “Alteridade, refúgio e migrações: um estudo dos discursos e da produção de sentido na telenovela Órfãos da Terra (2024)” disponível neste link. A pesquisa examina como a novela dialoga com os princípios do direito internacional e humanitário, além de contribuir para a conscientização pública sobre a crise dos refugiados.

Essa análise coloca a obra no centro de uma discussão mais ampla sobre a construção de narrativas midiáticas em torno de temas globais. Ao abordar a crise síria sob uma perspectiva humanizada e multidimensional, a novela resgatou um aspecto crucial que muitas vezes se perde em discursos políticos ou mediáticos: a centralidade da experiência humana e os dilemas éticos que cercam as migrações forçadas.

O impacto social de Órfãos da Terra foi significativo, pois abriu espaço para um debate mais amplo sobre a responsabilidade do Brasil enquanto país receptor de refugiados. Além de sua narrativa ficcional, a produção gerou discussões nas redes sociais e em espaços acadêmicos sobre como as políticas públicas podem melhor atender às necessidades dessas populações.

Um aspecto interessante destacado na tese de doutorado é como a telenovela trabalhou a construção dos personagens refugiados da ficção e da vida real, que deram depoimentos nos 154 capítulos da trama. Em muitos momentos, a obra mostrou as nuances das interações culturais, os conflitos internos e a força humana necessária para reconstruir uma vida em um novo país.

Assim, a telenovela reforçou a importância da arte como ferramenta de transformação social. Ao trazer para o horário nobre uma história baseada em eventos reais, a obra ajudou a aproximar o público brasileiro de uma realidade do outro lado do Atlântico, tornando mais tangível o impacto da crise síria que agora chega a um momento decisivo com a deposição do ditador e de sua família que governou o país por mais de 50 anos.

Desta forma, produções como Órfãos da Terra demonstram como a arte pode ser uma ferramenta importante para promover empatia e compreensão sobre crises humanitárias distantes. Elas também refletem a relevância da Síria no imaginário brasileiro e o impacto das narrativas migratórias na formação de nossa sociedade.

O Brasil e a diplomacia no Oriente Médio

A deposição de Bashar al-Assad tem implicações diretas para a geopolítica do Oriente Médio, uma região de grande importância estratégica. Para o Brasil, que mantém uma política externa marcada pela neutralidade e pelo diálogo multilateral, o colapso do regime sírio pode abrir oportunidades para fortalecer sua presença diplomática na região.

Historicamente, nosso governo tem se posicionado como um mediador em conflitos internacionais, defendendo soluções pacíficas e negociadas. No contexto da Síria, o Brasil pode buscar ampliar seu papel em missões humanitárias e no apoio à reconstrução do país, especialmente por meio de agências da ONU, como o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

A queda de Assad não resolve automaticamente os problemas estruturais da Síria. Pelo contrário, o país enfrenta agora novos desafios, como a reconstrução de infraestruturas devastadas, o retorno de milhares, talvez milhões de refugiados, e a estabilização política em meio a rivalidades internas e externas.

Para o Brasil, os desdobramentos na Síria oferecem tanto desafios quanto oportunidades. Do lado dos desafios, o aumento do fluxo de refugiados exige mais esforços de integração e políticas públicas robustas para lidar com a questão migratória.

Antes da guerra, o Brasil mantinha um comércio moderado com a Síria, exportando principalmente alimentos e produtos agrícolas. Com o conflito, essas relações comerciais foram praticamente interrompidas. A queda do regime de Assad e uma estabilização podem reativar essas trocas.

Empresas de construção civil e infraestrutura, que já possuem expertise em trabalhar em regiões devastadas por conflitos, podem desempenhar um papel importante na reconstrução do país do Oriente Médio. Além disso, a exportação de alimentos, um dos pilares do comércio brasileiro, pode ajudar na recuperação da segurança alimentar na Síria.

O Brasil também pode fortalecer sua presença em iniciativas humanitárias, oferecendo suporte técnico e financeiro para programas de saúde, educação e reconstrução. Isso ajuda a consolidar a imagem do país como um ator global comprometido com a paz e o desenvolvimento sustentável.

Além disso, a diáspora síria desempenha um papel ativo nesse processo, atuando como ponte entre os dois países e facilitando intercâmbios culturais, econômicos e sociais. Ao se posicionar de maneira proativa no cenário internacional, o Brasil pode fortalecer seus laços com a Síria e reafirmar seu papel como defensor de soluções pacíficas e promotor de direitos humanos em crises globais. 

Com a queda do regime de Bashar al-Assad e as mudanças políticas, o número de refugiados e migrantes pode aumentar, reacendendo discussões sobre a capacidade e o compromisso do Brasil em lidar com essas demandas. Da mesma forma, produções culturais como Órfãos da Terra mostram-se mais relevantes do que nunca, servindo como pontes entre diferentes realidades e promovendo a empatia em tempos de polarização.

No futuro, a telenovela poderá ser relembrada como um marco na representação cultural da crise síria e uma inspiração para que outras produções por aqui abordem temas globais, reconstruindo na ficção questões baseadas no real para sensibilizar audiências. A análise acadêmica sobre essa obra também reforça sua importância como material de estudo e reflexão, integrando as esferas da arte, do direito e da política internacional.

*Luciano Teixeira é doutor pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). A tese “Alteridade, refúgio e migrações: um estudo dos discursos e da produção de sentido na telenovela Órfãos da Terra (2024)” investiga a produção de sentidos sobre refúgio e migração, analisando a linguagem e o discurso da telenovela Órfãos da Terra (TV Globo, 2019), que teve como tema principal a situação de refugiados sírios. Ele também faz parte do Grupo de Pesquisa Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação (GELiDis) da USP. 

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