A inteligência artificial e as legal due diligences
Leonardo Barém Leite*
Como comentamos em artigos anteriores (nesta série especial sobre a nossa visão e experiência acerca do atual “status” da questão da inteligência artificial, em diversos aspectos do direito societário, corporativo e de negócios brasileiro) a evolução tecnológica é extremamente importante, impactante e atual, e o desafio de quem se atreve a comentar é ainda maior pois é um assunto “em construção”.
Neste breve texto, abordamos o tema do que costumamos chamar no direito corporativo de ‘legal due diligence”, que pode ser aplicado a diversos contextos, como “fusões e aquisições”, abertura de capital, “análises” de parceiros e de fornecedores, aspectos da governança corporativa, do “compliance’ e do E-ESG, dentre vários outros.
Nessa linha, como o mais conhecido e “tradicional” entre nós é o contexto dos investimentos, em “M&A”, “joint ventures” e “correlatos” (tanto de ativos, quanto de “equity” e/ou dívida), começaremos nossas “pontuações”, registros de entendimento, preocupações e provocações construtivas por abordar esse contexto.
Sabemos que “toda aquisição” (especialmente se nela for considerado todo o arcabouço costumeiro de cuidados, e de procedimentos recomendados) envolve ao menos um procedimento de “due diligence” (que por sua vez pode ocorrer em vários temas e aspectos, mas que aqui consideraremos, fundamentalmente, o jurídico”).
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Ela pode ocorrer de ao menos duas formas:
(a) por parte da própria organização “alvo” (também chamada de “target”), que pode (e em geral recomendamos que o faça) avaliar a si própria, para que melhor conheça a sua efetiva situação jurídica, levantando dados, informações e documentos que podem trazer “surpresas” E que pode ajudar a “ganhar tempo e recursos”, preservar a sua imagem, e melhor seu “valuation” se ao saber da sua situação puder “corrigir” eventuais questões.
Tem sido frequente que ao passar por “legal due diligences” as empresas alvo sejam surpreendidas com informações de “questões” que desconheciam, e que pode atrasar ou atrapalhar bastante algumas negociações; razão pela qual antecipar-se e realizar “em si mesma” é sempre uma boa prática. Ou
(b) por parte de quem esteja avaliando ou considerando adquirir ativos da empresa alvo (ou ela própria, no todo ou em parte).
Esse processo de investigação pode ser complexo, longo, detalhado e desafiador, a depender do contexto e da qualidade das informações e dos documentos, sendo que há algumas décadas todo o trabalho era humano e presencial. E as informações solicitadas e “combinadas” eram disponibilizadas para análise e verificação em “data rooms físicos e presenciais”.
Em muitos casos, grandes equipes de profissionais treinados para essas atividades eram deslocadas, por vezes por vários dias e para locais distantes, sem contar que a atividade toda era humana e manual, o que envolvia, também, enormes quantidades de papel e de cópias.
Havia ao menos 2 (dois) “tipos de “diligências”, a presencial documental, e a presencial física (com efetivas visitas e vistorias aos locais em questão, que fossem considerados relevantes).
O tema evoluiu bastante e já se faz uso, há muitos anos, de “data rooms digitais” que concentram eletronicamente todas as informações e documentos, permitindo que sejam acessados a distância, eletronicamente, de forma mais rápida, e ainda com o benefício de diversos graus de controles de acesso.
Esses sistemas e métodos passaram a ser chamados (e conhecidos) de “legal due diligence digital/eletrônica”, com economia de tempo e de recursos, embora, como sempre, existam seus defensores e seus críticos (pois em geral não se consegue unanimidade), mas continuavam a contar com a participação, o trabalho, a triagem e a análise de humanos.
Em grande parte, a “legal due diligence” documental mudou muito e tornou-se mais ágil e menos custosa, mas questionamos fortemente os que defendem que a “legal due diligence física” (especialmente para a visita e a análise de instalações, situações fáticas, verificação de condições de atuação/trabalho/armazenagem/operação etc.) tenha sido integral e eficazmente substituída pela tecnologia.
De fato, a tecnologia ajuda e simplifica bastante essa atividade no tocante a documentos (como contratos, certidões, atestados, licenças, certificações etc.), mas não afasta (da forma como entendemos o tema) a necessidade de visitas “in loco”, por humanos especializados, que consigam verificar se os documentos de fato evidenciam o que se “vê”, mede e avalia presencialmente.
A história recente (no Brasil e no mundo) registra muitos e muitos casos em que documentos (ainda que verdadeiros) indicam situações e práticas que não se sustentam na prática e que “não resistem” a olhares presenciais treinados e especializados (inclusive, em outro contexto, no tocante a “compliance” – por exemplo).
Mais recentemente, “muita coisa foi ainda mais automatizada” e agora vivemos o “tempo” de testar, avaliar e entender como a Inteligência Artificial (IA) pode ser usada nesse contexto, seus prós, seus cuidados, seus riscos e seus “contras” – que aqui nos arriscamos a pontuar (ao menos em alguns aspectos).
Como o mundo corporativo é rápido, exigente, e sempre busca eficiências e “economias”, de tempo, de dinheiro e de outros recursos, é natural que muitos defendam que a IA e seus “sistemas”, “robôs” e “algoritmos” realizem todo esse trabalho de “legal due diligence” (ou parte dele).
Somos entusiastas da evolução, da eficiência, das economias responsáveis, e do uso de tecnologia, de forma que naturalmente entendemos que a IA de fato consiga ajudar bastante, mas de outro lado preocupa-nos que esteja sendo usada como “única” ferramenta de avaliação.
Ao menos “por enquanto” entendemos que essa ferramenta adicional pode ajudar bastante, mas que ainda não substitui análises e avaliações humanas, quanto a riscos, fragilidades e “questões”, que podem afetar a concepção de um negócio, o “valuation”, os riscos, as “responsabilidades/liabilities”, as garantias etc. – e até a própria viabilidade de uma operação.
Receamos muito que profissionais e instituições se empolguem, além do razoável, com as novas “ferramentas e tecnologias”, e que por pressa, economia, ou desconhecimento, assumam riscos que nem sequer conseguem avaliar e precificar.
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As ferramentas tecnológicas (e nesse contexto a IA), podem ajudar muito, e ajudam, mas ainda não substituem as pessoas em diversos aspectos, como por exemplo a definição de riscos, e a inclusão de temas que somente a presença humana pode indicar (ao passo em que a “máquina”, por erro ou falha de programação, ou ainda por equívoco de premissas e de vieses).
Uma questão prática muito importante e nem sempre lembrada é que se uma “legal due diligence” for realizada com erros, por equipes especializadas, em geral é possível identificar claramente as responsabilidades pela falha, mas no caso do uso de sistemas e de IA essa identificação e alocação de responsabilidades tende a ser muito mais desafiador.
Ao se perceber um grave erro de análise, em um exemplo bastante simples e rápido, quem seria responsabilizado? Quem comprou, quem usou, quem nela confiou, quem nela confiou, quem nela se baseou, quem programou, quem autorizou, ou todos eles?
Para reforçar os argumentos para que ao menos questões e aspectos chave sejam (por enquanto) mantidos com humanos treinados e experientes, em especial no tocante a tomada de decisão, recordamos alguns pontos que nem sempre são lembrados – inclusive quanto à origem e aos objetivos das “legal due diligences” no contexto aqui apresentado.
A “devida diligência legal” tem vários objetivos, e dentre eles estão a coleta de informações e análise de dados e de documentos que evidenciem que investidores/’compradores” tomaram os devidos cuidados para conhecer e avaliar o negócio e os seus riscos, bem como para ajudar a balizar decisões sobre a viabilidade e a atratividade do negócio, o valor/preço, as contingências (que também ajudam a estimar garantias), cuidados adicionais etc.
Nesse aspecto, é comum que em geral se alegue que a “legal due diligence” ajuda apenas o comprador (à medida em que colhe mais informações sobre o alvo), quando na verdade ajuda a todas as partes envolvidas, pois tudo o que é divulgado e encontrado, uma vez registrado em documentos próprios, pode ser usado, também, como argumento de defesa do alvo/vendedor (por já ter sido divulgado e com isso precificado).
E como origem, destacamos questões inclusive norte-americanas (uma vez que nesse tema nossas práticas locais derivam de métodos internacionais, que inclusive justificam a forma de trabalho e as diversas expressões do jargão de mercado), como por exemplo diversos “casos” (processos judiciais) em que se abordou a importância da devida diligência.
Complementamos, ainda, com uma breve referência ao conhecido (para quem atua no mercado corporativo – especialmente com vivência internacional) “Securities Act de 1933” (em referência à legislação correspondente, nos Estados Unidos da América”), que aborda a “devida diligência”. Em certa medida, naquele contexto, a questão estava mais diretamente ligada às informações que os “corretores de valor mobiliários’ deveriam fornecer aos investidores, mas o tema se ampliou.
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O tema é, portanto, complexo e ainda será testado pela prática, pela experiência, pelos operadores do mercado, e certamente pelas autoridades e agências, bem como em arbitragens e processos administrativos e judiciais, mas certamente essas questões terão que ser equacionadas para que se estabeleça os limites do uso da IA.
Em algum momento, surgirão normas (talvez legislação) e construções de melhores práticas que nortearão o avanço do tema, mas “por enquanto” vemos avanços, oportunidades, ganhos de eficiência com uso das ferramentas atualmente disponíveis, mas também riscos e preocupações. Caso em que, recomendamos muita cautela.
Para fecharmos este breve artigo destacamos ainda uma questão chave que ficará para a reflexão de todos, uma vez que se o objetivo da “due diligence” é exercer – e depois comprovar (esse exercício) da – devida diligência, ao remetermos essa “tarefa” à Inteligência Artificial, especialmente nos casos em que “ela” estabelecer critérios, fizer análises sozinhas, e até mesmo tomar decisões (por exemplo de considerar “pontos” como relevantes ou materiais), ainda se poderá considerar que a diligência ocorreu de forma devida?
Sigamos acompanhando…
Leonardo Barém Leite é sócio sênior do escritório “Almeida Advogados” em SP, especialista em Direito Societário e Contratos, Fusões e Aquisições, Governança Corporativa, Sustentabilidade e ESG, “Compliance”, Projetos e Operações Empresariais, e Direito Corporativo; também é árbitro, professor, conselheiro, e autor de diversas obras. Presidente da Comissão de Direito Societário, Governança Corporativa e ESG da OAB-SP/Pinheiros.