Os impactos para o Brasil e o mundo da flexibilização da regulação de IA nos EUA
Luciano Teixeira – São Paulo
A recente decisão do presidente Donald Trump de revogar a Ordem Executiva 14110, implementada em 2023 pelo ex-presidente Joe Biden, marca uma mudança radical na abordagem dos Estados Unidos em relação à regulamentação da inteligência artificial (IA). Essa ordem executiva tinha como objetivo principal estabelecer padrões rigorosos de segurança e transparência para o desenvolvimento de sistemas de IA, incluindo a exigência de que empresas realizassem e divulgassem testes de segurança antes do lançamento de seus produtos no mercado.
A revogação dessa diretriz reflete uma estratégia do governo americano voltada para reduzir barreiras regulatórias e estimular a inovação tecnológica no país. Sob a justificativa de fomentar o desenvolvimento e atrair investimentos, o governo aposta em um modelo de mínima intervenção estatal, que contrasta com a abordagem mais rigorosa adotada anteriormente. Essa mudança também demonstra a intenção dos Estados Unidos de se posicionarem como líderes globais em tecnologia de ponta.
Esse movimento ocorre em um momento de debates globais sobre como regulamentar a IA de forma eficaz, garantindo que os avanços tecnológicos não comprometam a segurança e os direitos fundamentais dos cidadãos. Enquanto a União Europeia avança com o EU AI Act, que busca equilibrar inovação e responsabilidade, os Estados Unidos optam por uma abordagem menos restritiva, ampliando as diferenças entre as principais economias do mundo no que diz respeito à governança tecnológica.
Segundo os especialistas ouvidos por LexLegal, a diferença entre o modelo europeu e o americano promove um debate global essencial: como equilibrar o incentivo à inovação com a necessidade de proteger direitos fundamentais?
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A decisão também gera preocupações sobre possíveis impactos em países com governanças regulatórias menos consolidadas, como o Brasil. Economias emergentes podem enfrentar dificuldades para estabelecer padrões éticos e técnicos robustos, especialmente diante da concorrência com produtos desenvolvidos em ambientes menos regulamentados. Isso pode criar desafios para alinhar o avanço tecnológico com a proteção de direitos e a segurança.
Inovação ou retrocesso?
A decisão de desregulamentar a IA reflete uma estratégia econômica mais ampla, priorizando o crescimento do setor tecnológico. “A medida busca atrair investimentos e consolidar os Estados Unidos como o principal hub global para inovação em IA. Reduzir restrições regulatórias pode acelerar a experimentação tecnológica e abrir espaço para soluções disruptivas, mas traz desafios relacionados à ética e à segurança”, afirma Daniel Becker, especialista em Regulação de Novas Tecnologias e sócio do BBL Advogados.
Essa abordagem está alinhada a tendências observadas em outros países, como a Argentina sob a liderança de Javier Milei, que também adota uma postura de liberalização econômica voltada para tecnologia.
Larissa Pigão, advogada especializada em direito digital e proteção de dados pessoais, alerta para os riscos de uma abordagem sem diretrizes claras: “A ausência de regulamentação pode abrir margem para práticas irresponsáveis, como o desenvolvimento de sistemas de IA que perpetuam discriminação ou violam direitos fundamentais. Essa postura pode enfraquecer os esforços globais para estabelecer normas éticas e seguras”, diz.
Impactos no Brasil e em economias emergentes
A flexibilização nos Estados Unidos tem implicações diretas para países como o Brasil, onde a governança de IA ainda está em fase de consolidação. Segundo Larissa Pigão, empresas americanas, operando sob regulações menos rigorosas, podem trazer ao mercado brasileiro soluções de IA desenvolvidas com critérios menos robustos de transparência e ética, dificultando a avaliação de conformidade com normas locais.
Esse cenário pode gerar pressões competitivas, forçando países emergentes a adotar medidas que priorizem a competitividade em detrimento da responsabilidade ética. “Além disso, tal cenário pode atrasar a consolidação de uma governança sólida de IA no país, minando iniciativas que buscam promover o uso responsável da tecnologia”, alerta a especialista.
A ausência de padrões globais harmonizados pode aprofundar desigualdades tecnológicas e riscos éticos: “Empresas de países desregulados podem explorar mercados emergentes com produtos que exacerbam desigualdades ou violam direitos fundamentais”, avalia Daniel Becker. Essa dinâmica, de acordo com o advogado, dificulta a implementação de sistemas que respeitem valores éticos universais e aumenta os riscos de exclusão social, viés algorítmico e outras consequências negativas da IA.
A importância de regulamentações globais
Para Daniel Becker, a falta de padrões harmonizados em IA cria um terreno fértil para desigualdades tecnológicas. “A ausência de regulamentação global dificulta a criação de uma base comum de valores éticos e práticos, essencial para que a tecnologia sirva a todos de maneira inclusiva e responsável”, observa.
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Os especialistas concordam que a governança da IA exige equilíbrio entre inovação e proteção. “A desregulamentação pode trazer benefícios no curto prazo, mas, sem mecanismos claros de controle, os riscos de longo prazo podem comprometer não apenas a segurança tecnológica, mas também a confiança do público”, afirma Larissa Pigão.
No contexto brasileiro, a ausência de regulamentação global coloca o país em uma posição vulnerável. “É crucial que o Brasil invista em diretrizes robustas e em uma governança que promova inovação de forma ética e sustentável”, diz Larissa. “A adaptação a esse cenário desafiador requer uma postura proativa por parte do governo e do setor privado para garantir que a tecnologia beneficie a sociedade como um todo”.
O debate em torno da desregulamentação da IA nos Estados Unidos é apenas o começo de uma discussão mais ampla sobre o futuro da tecnologia e suas implicações globais.
“Esse equilíbrio entre dinamismo tecnológico e governança ética será determinante não apenas para o sucesso econômico, mas também para a construção de um futuro tecnológico seguro e sustentável”, analisa Becker.
“Sem cooperação internacional, o risco é criar um ambiente de competição desigual, onde economias emergentes, como o Brasil, enfrentem barreiras adicionais para promover uma tecnologia ética e inclusiva”, explica Pigão.
Desta forma, a revogação da Ordem Executiva 14110 nos EUA reflete as tensões entre inovação e regulação em um mundo onde a tecnologia avança mais rápido do que as leis. Para os advogados da área, cabe aos formuladores de políticas e à sociedade civil encontrar caminhos que promovam a inovação sem comprometer direitos fundamentais, assegurando que a inteligência artificial seja uma ferramenta de progresso e não mais uma fonte de desigualdade.