Natacha Oliveira:“STF não está na ‘corrida maluca’ da tecnologia, mas comprometido em adotar IA com segurança”
Luciano Teixeira – São Paulo
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem desempenhado um papel fundamental nas mudanças sociais e políticas do Brasil nos últimos anos, sendo um dos principais responsáveis por decisões cruciais que afetam a sociedade como um todo. Em meio a uma era de transformações digitais, a entidade máxima do Judiciário também tem abraçado a inovação tecnológica para ampliar sua eficiência e responder à complexidade dos temas que chegam ao Tribunal. A introdução de novas ferramentas tecnológicas, especialmente de inteligência artificial (IA), tem permitido uma análise mais precisa e ágil de questões que antes demandariam tempo e recursos humanos expressivos.
No centro dessa modernização está Natacha Moraes de Oliveira, Secretária de Tecnologia da Informação do STF, que lidera os avanços tecnológicos do Tribunal. Desde 2018, o STF começou a implantação de sistemas de IA, como o Victor, projetado para classificar processos conforme os temas de repercussão geral. Essa tecnologia tem facilitado a identificação de casos que podem ser resolvidos com celeridade, sem a necessidade de encaminhamento a ministros, otimizando os recursos do tribunal e acelerando a entrega de Justiça.
Com a evolução do sistema Victor, em 2022, o STF introduziu o VictorIA, que amplia as funcionalidades de IA com um enfoque especial na gestão e agrupamento de temas. A ferramenta identifica, de maneira automática, padrões e processos semelhantes, o que possibilita uma análise mais detalhada e destaca casos atípicos que exigem uma atenção diferenciada. Essa capacidade de discernir casos recorrentes dos que necessitam de um olhar mais cuidadoso tem elevado a qualidade do julgamento e potencializado o impacto das decisões.
Natacha defende a integração dos sistemas com outros tribunais e órgãos do Judiciário, como a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O objetivo é que o STF e outras instituições compartilhem dados de maneira mais automatizada, reduzindo a burocracia e aumentando a eficiência. Assim, o STF caminha para se tornar uma referência global no uso da inteligência artificial no Judiciário, mostrando como a inovação tecnológica pode ser uma aliada para alcançar a celeridade e a justiça. Na entrevista a seguir, Natacha conta um pouco dos bastidores desta transformação na instância suprema do Judiciário no país.
Luciano Teixeira: Como evoluiu o uso de tecnologia no STF nos últimos 10 anos? O que mudou nesse período?
Natacha Moraes de Oliveira: Dez anos atrás, o cenário era bem diferente. Em 2018, o STF desenvolveu o sistema Victor, que classifica processos com base nos temas de repercussão geral. Foi um projeto colaborativo que envolveu a análise e categorização dos recursos extraordinários com agravos, permitindo identificar processos que poderiam ser resolvidos diretamente pela presidência, sem necessidade de distribuição aos ministros. Esse sistema trouxe muita agilidade ao Tribunal. Em 2022 e 2023, o projeto evoluiu com o sistema VictorIA, que atua na gestão dos temas e no agrupamento de processos semelhantes. O VictorIA também permite identificar a necessidade de novos temas afetados e automatiza parte do trabalho, agregando valor ao processamento dos casos que exigem atenção especial.
Luciano Teixeira: Quais são as principais vantagens que a IA trouxe nos últimos anos para o STF e para os ministros?
Natacha Moraes de Oliveira: A IA ajuda na classificação e no agrupamento de processos, permitindo que os casos mais específicos e relevantes recebam atenção. Isso traz agilidade, já que processos de temas repetitivos, que não exigem nova análise, são despachados rapidamente pela presidência. Assim, conseguimos reduzir o volume de processos que chegam aos gabinetes dos ministros e focar naquilo que é realmente complexo e sensível.
Luciano Teixeira: Você é a favor da integração dos sistemas de todo o Judiciário. Como você vê esse futuro?
Natacha Moraes de Oliveira: Essa integração é essencial e estamos trabalhando nisso, especialmente com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Hoje, os tribunais e outras entidades do Judiciário ainda não estão completamente integrados. O STF possui uma integração inicial com alguns órgãos, como a Advocacia-Geral da União (AGU), Defensoria Pública da União, Procuradoria-Geral da República e Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, mas precisamos de avanços para que esse processo seja mais automático e completo. Muitos tribunais e cartórios ainda não possuem uma conexão direta com o STF. O CNJ tem trabalhado em uma plataforma unificada que centralizará os dados do Judiciário, facilitando a integração com outros órgãos como a Polícia Federal, por exemplo, sem necessidade de ofícios tradicionais.
Luciano Teixeira: Então a IA tem e vai continuar ainda mais no futuro a reduzir o trabalho e a otimizar o tempo no STF?
Natacha Moraes de Oliveira: Com certeza. A introdução do sistema Victor e do Victoria no STF reduziu significativamente o número de processos que chegam aos gabinetes. Esses processos são classificados e muitos são resolvidos rapidamente, proporcionando maior celeridade nos julgamentos de temas já decididos. Isso libera recursos para focar em casos mais complexos e urgentes.
Luciano Teixeira: A IA pode realmente ajudar a fazer justiça?
Natacha Moraes de Oliveira: A IA facilita a identificação de casos similares e destaca aqueles que são únicos ou incomuns. Com o agrupamento de processos, conseguimos visualizar padrões e, ao mesmo tempo, identificar os casos que fogem desses padrões. Isso permite que a análise seja mais precisa e que temas sensíveis sejam tratados com mais cuidado.
Luciano Teixeira: Sobre o risco de “alucinação” (respostas incorretas ou imprecisas) dos sistemas de IA, como vocês lidam com os desafios éticos no uso dessas tecnologias?
Natacha Moraes de Oliveira: A IA generativa pode trazer informações incorretas, a chamada “alucinação”. Eticamente, precisamos evitar usos inadequados da tecnologia, como em sistemas de reconhecimento facial que monitoram todos na rua o tempo todo. Proibir ou regular a IA de maneira rigorosa pode até conter seu uso, mas não a impede totalmente. É essencial avaliar e refletir cuidadosamente sobre a adoção de cada tecnologia antes de aplicá-la.
Luciano Teixeira: Em comparação com os tribunais superiores de outros países, como o STF está posicionado em relação ao uso de IA?
Natacha Moraes de Oliveira: O STF foi pioneiro com o sistema Victor em 2018. No entanto, optamos por uma abordagem mais cautelosa, priorizando a segurança antes de implementar novas tecnologias. Não estamos na “corrida maluca”, como chamamos, mas seguimos comprometidos em implementar IA de forma segura e responsável. Nos próximos anos, veremos o STF avançando com ferramentas de IA generativa de maneira segura e eficaz.
Luciano Teixeira: Que mensagem você deixaria para os jovens advogados que estão começando a usar IA?
Natacha Moraes de Oliveira: A IA está mudando a prática jurídica. Ela não substituirá o advogado, mas aqueles que dominarem seu uso certamente terão uma vantagem sobre os que não a utilizam.
Luciano Teixeira: E, pessoalmente, como tem sido para você liderar esses projetos de tecnologia no STF?
Natacha Moraes de Oliveira: É extremamente gratificante. Trabalho há 25 anos informatizando o Judiciário, então chegar até aqui é uma grande realização. Ver o avanço e as conquistas tecnológicas que alcançamos é um motivo de orgulho. Claro, a tecnologia nunca para; estamos sempre evoluindo e inovando.