Influenciadores faturam alto com vídeos misóginos no Youtube
Da redação
O discurso misógino se tornou um negócio lucrativo para alguns influenciadores digitais. A conclusão é do grupo de pesquisadores do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, do NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os estudiosos analisaram milhares de vídeos com conteúdos misóginos publicados no Youtube e atestaram: alimentadas por um discurso vitimista contrário à luta por igualdade de gênero, as chamadas redes masculinistas não só estimulam e naturalizam a violência de gênero, como faturam com a divulgação do ódio às mulheres.
Com o apoio do Ministério das Mulheres e empregando recursos computacionais, os pesquisadores do NetLab analisaram 76,3 mil vídeos que, juntos, totalizam quase 4 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários. Deste total, os estudiosos selecionaram 137 canais do Youtube cujo conteúdo classificaram como “explicitamente misógino” para verificar, em termos qualitativos, as estratégias de discurso e de monetização usadas pelos responsáveis por estes canais que, em conjunto, publicaram mais de 105 mil vídeos nos últimos seis anos. O resultado consta do relatório “Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube”.
“Um dos grandes desafios é definir o que é misoginia. Inclusive para a tomada de qualquer atitude para barrar a disseminação desses discursos”, disse Luciane Belin, uma das coordenadoras da pesquisa, ao apresentar aos jornalistas os principais resultados do relatório. No relatório, misoginia compreende não só o ódio manifesto contra mulheres, mas toda forma de desprezo, aversão e tentativa de controle por meio do estímulo de sujeição e justificação da violência contra a mulher.
“Tentamos olhar para esse conceito de forma mais ampla para abarcar todas essas expressões”, acrescentou Luciane, admitindo que as próprias plataformas digitais podem, em algumas situações, ter dificuldades para identificar conteúdos misóginos, já que este pode ser velado ou disfarçado com o emprego de outros recursos discursivos, como um pretenso humor. “Há diferentes tipos de discursos [misóginos]. Desde aqueles em que os homens pregam que outros homens não se relacionem com mulheres em hipótese alguma, àqueles que [recomendam que] destruam o ego das mulheres, explorando as vulnerabilidades resultantes da redução da autoestima etc”,
“O que nossa pesquisa mostra é que, no Youtube, os influenciadores misóginos fazem generalizações a partir de determinados perfis de mulheres […] como profissões, grupos sociais e raciais. Um exemplo: há muitos vídeos atacando mães solteiras, falando que [os homens] não devem se relacionar com estas mulheres porque, em geral, elas estariam apenas buscando pais para os filhos de outros homens”, acrescentou Luciane, explicando que muitas dessas mensagens são disfarçadas de “desenvolvimento pessoal masculino”.
Os pesquisadores decidiram concentrar seus esforços no Youtube devido à popularidade da plataforma no Brasil, onde tem cerca de 142 milhões de usuários e responde por cerca de 15% de toda a produção audiovisual consumida pelos brasileiros, perdendo apenas para a Globo. Para a diretora do NetLab, Marie Santini, a divulgação de mensagens de ódio contra as mulheres e a monetização deste tipo de conteúdo não se limita à plataforma.
“Não fizemos um estudo, mas imagino que seja possível encontrar um cenário equivalente, ou não muito diferente, em outras plataformas, já que todas elas têm o mesmo modelo de negócios [baseado] na tentativa de atrair e reter o usuário pelo máximo de tempo possível, monetizando [faturando] com [a venda de] anúncios”, comentou Marie, assegurando que o volume deste tipo de mensagens vem aumentando nos últimos anos – os vídeos analisados compreendem o período entre 2018 e 2024, sendo que 88% deles foram publicados a partir de 2021 – o que coincide com a crescente violência contra as mulheres.
Neste conjunto, a temática antifeminista respondeu por 62 mil visualizações. Os pesquisadores identificaram estratégias associadas à defesa da tese de que mulheres precisam ser controladas e ter sua atuação pública limitada. E calcularam que 66% dos canais analisados defendem que o sexo biológico é definidor do comportamento das pessoas, enquanto 15% encorajam, relativizam ou justificam abusos e violências contra as mulheres. Ao se aprofundar na análise qualitativa, os pesquisadores se depararam com vídeos que, a pretexto de “ensinar técnicas de sedução” para outros homens, divulgam estratégias de manipulação e violência psicológica e estimulam o uso de aplicativos de espionagem para o monitoramento de mulheres.
“As plataformas dizem nos seus termos de uso que não permitem este tipo de conteúdo, mas, na prática, estamos vendo que este conteúdo floresce e é monetizado, havendo todo um ecossistema que se autossustenta, gerando dinheiro, lucro, não só para os criadores de conteúdo, como para as próprias plataformas”, acrescentou a diretora do NetLab, afirmando que cerca de 80% dos canais analisados recebem, do Youtube, dinheiro obtido com a divulgação de publicidade.
“Fora isso, esses produtores de conteúdo criaram novas formas alternativas de monetização, como os pedidos de doação e transferência bancária, especialmente por PIX e criptomoedas – e aí deve haver uma série de fraudes e complicações; divulgação de sites para a venda de produtos e serviços como e-books, cursos, consultoria, criando uma demanda pela misoginia enquanto produto a ser comercializado”, comentou Marie, acrescentando que 28% dos canais também utilizam plataformas de financiamento coletivo (crowdfunding).
Presente à divulgação do relatório da pesquisa, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, voltou a defender a urgência da necessidade da regulamentação das redes sociais. “Pretendemos fazer um diálogo para dentro do Parlamento e fortalecer o debate que está tendo no STF [Supremo Tribunal Federal], para a questão da regulamentação. Precisamos regular ao máximo o discurso de ódio. Por outro lado, precisamos debater com a sociedade, fazer com que outros atores [sociais] que não estão [participando] do debate do enfrentamento da violência contra as mulheres e que [muitas vezes] sequer percebem o que está acontecendo estejam ao nosso lado. Também precisamos disputar os conteúdos nestas redes sociais, construindo outros tipos de conteúdo. Também queremos discutir com o Youtube e com as redes sociais que estão favorecendo este tipo de discurso, principalmente a questão de remunerarem a divulgação do conteúdo de ódio”.
Impacto da misoginia digital no mercado de trabalho
A criminalista e desembargadora federal aposentada Cecília Mello destaca um aspecto menos abordado, mas igualmente relevante, relacionado à misoginia presente nas redes sociais: o impacto no mercado de trabalho. Para ela, o discurso misógino não apenas perpetua preconceitos e discriminações, mas também interfere na competição profissional entre homens e mulheres, refletindo práticas desleais de quem se sente ameaçado por avanços femininos.
“O número de mulheres que alcançam protagonismo e liderança em suas carreiras, não obstante todas as barreiras e dificuldades, cresce constantemente. Isso se deve não apenas aos esforços das mulheres na ocupação de espaços, mas também à efetivação de políticas públicas e privadas de inserção das minorias,” afirma Cecília, enfatizando a importância de mudanças estruturais para promover a igualdade de gênero.
Entretanto, segundo a criminalista, o crescimento dessa presença feminina no mercado de trabalho provoca reações negativas em determinados grupos. “Como em um jogo desonesto, ao invés do embate leal, as estratégias perversas parecem acenar como um caminho mais rápido e eficaz para aqueles que não conseguem aprimorar a sua própria condição profissional e civilizatória,” analisa.
Para Cecília, a monetização de discursos de ódio nas plataformas digitais reflete uma ausência de regulação que permite que conteúdos antidemocráticos e discriminatórios prosperem. Segundo ela, práticas como estas violam direitos e criam um ambiente de competição desleal, afetando diretamente os valores de igualdade e meritocracia.
“O mundo democrático não assimila mais preconceitos discriminatórios de qualquer espécie. Restam-nos a resiliência e o esforço para a construção de uma sociedade igualitária, onde a distância entre boas ideias e práticas efetivas seja diminuída,” concluiu.
Sobre a pesquisa
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Foram analisados 76 mil vídeos de 7.812 canais, com mais de 4,1 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários.
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O número de vídeos da machosfera no YouTube aumentou significativamente desde 2022, com 88% publicados nos últimos três anos.
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Análise computacional dos títulos identificou “Desprezo às mulheres e insurgência masculina” como o tema mais recorrente, presente em 42% dos títulos dos vídeos.
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A pesquisa identificou 137 canais com conteúdo misógino. Juntos, eles somam 3,9 bilhões de visualizações, 105 mil vídeos publicados e, em média, 152 mil inscritos.
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80% dos canais misóginos utilizam estratégias de monetização, como anúncios, Super Chat, doações e vendas de produtos.
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Em seus conteúdos, os influenciadores propagam ódio, aversão, controle e desprezo às mulheres. As mais atacadas são feministas, mães solteiras e mulheres com mais de 30 anos.
Análise qualitativa
Mais de 33 mil títulos de vídeos analisados exploram temas relacionados ao “Desprezo às mulheres e estímulo à insurgência masculina” contra uma suposta dominação feminina. Os criadores de conteúdo reforçam ideais masculinistas com termos ofensivos e adotam um vocabulário próprio para construir comunidades e escapar do monitoramento de discurso de ódio do YouTube.
Os dados mostram que a divulgação dos vídeos no YouTube possibilita a formação de comunidades que se articulam – inclusive financeiramente – em torno de discursos com elementos misóginos. Aspectos como vocabulário próprio, participação de espaços restritos, interações entre os influenciadores e com o público e venda de produtos e serviços são alguns indicativos da comunidade formada em torno da misoginia.
Alguns números relacionados à monetização que a pesquisa do NetLab-UFRJ identificou foram:
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Exceto pela presença do Programa de Membros do YouTube (18%), todas as demais formas de monetização investigadas são mais frequentes em canais.
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52% dos canais misóginos possuem ao menos um vídeo com anúncios.
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Oito canais com conteúdo misógino que receberam Super Chat fizeram 257 transmissões e somaram R$68 mil em arrecadações.
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Links para sites como plataformas de financiamento coletivo ou links de afiliados estão presentes em 28% dos canais misóginos.
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Alguns influenciadores chegam a cobrar até R$1.000 por consultorias individuais de desenvolvimento pessoal masculino, que, em muitos dos casos, partem de técnicas de manipulação, humilhação, desumanização e violência psicológica.
Para preservar a integridade dos membros do NetLab e não dar publicidade aos canais de conteúdo misógino, os pesquisadores decidiram não identificar vídeos e os nomes dos influenciadores analisados. Entramos em contato com o Youtube por meio da assessoria de imprensa da empresa e aguardamos manifestação da plataforma de vídeos.
Acesse o Relatório Completo e o Sumário Executivo da pesquisa, disponível também em https://netlab.eco.ufrj.br.