Religiões de matriz africana são os principais alvos de intolerância e racismo no Brasil
Leonardo Ozima*
A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos registrou, no primeiro semestre deste ano, 1.940 denúncias de violações de liberdade religiosa no País, número equivalente a 91% das denúncias do ano passado. As religiões de matriz africana são os principais alvos de discriminação: dos 575 casos em que houve identificação da vítima, 276 envolveram adeptos de religiões afro-brasileiras. É importante ressaltar que o preconceito contra religiões de raízes africanas possui uma peculiaridade em relação às outras religiões ocidentais: o racismo.
O racismo religioso difere da intolerância religiosa, pois, além de cercear a liberdade de crença, representa uma discriminação racial e estrutural contra religiões tradicionais de povos negros. Nesse sentido, não se trata de casos isolados, mas sim de um sintoma de uma estrutura que perpetua preconceitos.
O professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, Márcio Henrique Pereira Ponzilacqua, define esse conceito: “O racismo religioso é o conjunto de condutas agressivas e violentas que indicam discriminação e ódio por religiões de matriz africana e seus adeptos, o que acaba por excluir essas pessoas dos espaços públicos e de sua liberdade de expressão”. Ele acrescenta: “O racismo religioso volta-se também contra territórios sagrados, tradições e culturas dessas denominações afro-brasileiras”.
Racismo estrutural e intolerância religiosa
A doutoranda Juliana Brant Carvalho, membro do Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, explica que o racismo religioso é parte do racismo estrutural: “Nem sempre as pessoas se dão conta da razão pela qual consideram religiões de matriz africana perigosas ou associadas ao mal. Isso ocorre, em grande parte, pela falta de contato e de conhecimento das tradições e culturas afro-brasileiras”. Ela ainda reforça: “Existe uma tendência social de considerar como ‘bem’ e ‘correto’ tudo o que se aproxima da cultura eurodescendente, e a espiritualidade cristã é vista como a norma no contexto histórico brasileiro”.
Juliana também ressalta que essa perseguição à cultura negra e africana é fruto de um longo processo histórico: “O estudioso Lisias Negrão, em 1973, escreveu que as manifestações afro-brasileiras eram vistas a partir da perspectiva cristã como formas demoníacas, pois seus símbolos e rituais desafiavam os costumes da época da escravidão, durante o processo de colonização. Isso se reflete até os dias atuais, gerando equívocos e incompreensões sobre as manifestações de populações não brancas”.
Ela ainda afirma que esse cerceamento da cultura negra remonta à época colonialista e perdurou até pouco tempo atrás: “A população negra não podia expressar livremente suas raízes espirituais sem ser criminalizada. A capoeira e a umbanda são exemplos de como essa população contornava a perseguição, mascarando significados por meio do sincretismo e escondendo-os no que era aceito pelo contexto hegemônico. A capoeira era vista como uma dança, e a umbanda incorporava elementos de santos católicos”.
Juliana enfatiza que a coexistência é essencial e que a intolerância, em alguns casos, surge do fundamentalismo religioso: “Quando um grupo dissemina uma ideia pouco disposta a compartilhar a sua verdade, entendendo-a como única, a intolerância tende a surgir. Já o racismo é reforçado por uma visão em que essa ‘verdade única’ historicamente vem de contextos eurodescendentes, que se impuseram na América Latina, África e Ásia”.
Leis e políticas públicas
Ponzilacqua aborda como a legislação brasileira trata o racismo: “A Lei 7.716, de 1989, chamada Lei Caó, tipifica os crimes de racismo e de injúria racial. A injúria racial refere-se a uma ofensa dirigida a alguém por questões de raça, cor e etnia. Já o crime de racismo aplica-se a toda uma coletividade”. O professor complementa: “Recentemente, a Lei 14.519, de 2023, instituiu o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, reconhecendo a importância das tradições, culturas e espaços sagrados desses povos”.
Ele acrescenta: “Também houve alteração na Lei 7.716, por meio da Lei 14.532 de 2023, incorporando a motivação religiosa à tipificação do racismo e da injúria racial. O racismo religioso, assim, abrange tanto o elemento religioso quanto o racial, dirigindo-se a religiões afro-brasileiras e seus adeptos por razões étnico-raciais”.
O professor ressalta que o efeito das leis não é imediato e que elas demandam tempo para serem assimiladas. Como essas alterações são recentes, ainda não se observam impactos significativos, mas são fundamentais para estabelecer parâmetros e regulamentos de controle e garantias.
Por fim, Ponzilacqua observa: “Outro elemento importante é que o racismo religioso se manifesta de diversas formas, o que tem sido cada vez mais abordado nas políticas públicas. Existe uma subnotificação dessas agressões e violências e é preciso promover meios para que esses grupos denunciem e relatem essas agressões”. Ele completa: “É essencial que esses grupos se organizem para participar dos poderes constituídos, pois há sub-representação de indígenas, quilombolas e membros de comunidades tradicionais de matriz africana, especialmente nos poderes Executivo e Legislativo”.
*Estagiário sob supervisão de Ferraz Junior e Rose Talamone. Com informações do Jornal da USP e Rádio USP.